Afirmação LGBTI+: como criminalizar as “terapias de conversão”?
Depois das alterações ao enquadramento normativo das dádivas de sangue, não há dúvidas sobre a pertinência da proposta da deputada não-inscrita Cristina Rodrigues para proibir as “terapias de conversão” em Portugal. No entanto, é questionável o formato jurídico proposto pela deputada para assegurar estes direitos.
As “terapias de conversão”, também conhecidas como a “cura gay” ou a “cura trans”, são uma realidade, um pouco por todo o mundo. Trata-se de modelos “terapêuticos” a partir dos quais profissionais de saúde mental, que ainda acreditam que a orientação sexual e a identidade de género são doença mental (mesmo que a OMS afirme o contrário desde 1990, para a primeira, e desde 2018 para a segunda…), procuram converter utentes homossexuais, bissexuais ou transgénero, convencendo estas pessoas de que a sua orientação sexual ou identidade de género é errada, e que pode ser corrigida – ao longo da história, os métodos são vastos, e já incluíram lobotomias e terapias de choque, existindo ainda hoje práticas individualizadas ou em grupo. As violações corretivas de mulheres lésbicas e bissexuais ou de homens transgénero são também um exemplo destas práticas, as quais ainda vão persistindo.
A discriminação em razão da orientação sexual, da identidade e expressão de género ou das características sexuais é uma realidade em Portugal. Prova disso é que apenas em 2021 a Direção-Geral da Saúde (DGS) tenha abandonado a prática homo- e bifóbica de excluir pessoas que tivessem relações com outras pessoas do mesmo sexo da dádiva de sangue. Apesar destas recentes alterações, as práticas da DGS continuam transfóbicas e interfóbicas (nomeadamente, em algumas das perguntas que constam no formulário a preencher por pessoas doadoras) – mesmo depois de políticas afirmativas como a Estratégia de saúde para pessoas LGBTI, de 2019, que ainda não se traduziu em mudanças efetivas no acesso destas populações ao seu direito à saúde.
A pressão internacional para alterar o cenário tem-se feito sentir, nomeadamente através de uma petição que já ultrapassou largamente as sete mil assinaturas. Em março de 2018, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução para parar com as “terapias de conversão” na Europa, sendo que Malta já legislou sobre a matéria, e o Reino Unido tem esse projeto em preparação. Em Malta, que implementou em 2015, antes de Portugal, uma lei que estabelece o direito à autodeterminação de género e à proteção das características sexuais (lei essa que salvaguarda os direitos das pessoas transgénero e das pessoas intersexo de forma muito mais eficaz que a portuguesa…), foi também implementada em 2016 uma lei para “para afirmar que todas as pessoas têm uma orientação sexual, uma identidade de género e uma expressão de género, e que nenhuma combinação particular dessas três características constitui um distúrbio, doença, deficiência, incapacidade e/ou debilidade; e para proibir práticas de conversão abusivas e enganosas ou intervenções contra a orientação sexual, identidade de género e ou expressão de género de cada pessoa” (tradução minha).
A deputada Cristina Rodrigues, mesmo que comprometida com os direitos LGBTI+ (antes desta iniciativa, já se tinha mostrado proactiva em garantir o fim das práticas homo- e bifóbicas na dádiva de sangue), parece não ter distinguido o âmbito da garantia do direito à autodeterminação de género e do direito à proteção das características sexuais, da necessária criminalização das chamadas “terapias de conversão”. Apenas isso pode justificar que o seu projeto de lei consista na primeira alteração à Lei n.º 38/2018, de 7 de Agosto, a par com a justa alteração ao Código Penal. Uma grave incongruência salta logo à vista: se nessa lei se pretende que passe a constar que “é proibido praticar ou recomendar tratamentos ou terapias que atentem contra a orientação sexual, o direito à identidade de género e expressão de género e o direito à protecção das características sexuais”, já no Código Penal pretende-se a adição de novo artigo, salvaguardando que “quem praticar ou promover [...] tratamento que vise alterar a orientação sexual da pessoa ou a sua identidade de género, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Entre uma alteração e a outra, que acontece à proteção das características sexuais face a estas “terapias de conversão”?
A verdade é que a proibição das “terapias de conversão” não passa por uma alteração à lei de direito à autodeterminação de género e à proteção das características sexuais – uma legislação aprovada a custo pela Assembleia da República, e que ainda teve de ultrapassar um veto presidencial. Uma lei que, no que toca à proteção das características sexuais, se sabe estar a enfrentar várias dificuldades na sua aplicação (perpetuando a violação dos direitos fundamentais das pessoas intersexo), além de não estar a ser aplicada por entidades-chave, como é o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que, em contradição a esta lei, recusa a emissão de documentos onde conste o nome social ou, nas palavras da lei, o “nome próprio adotado face à identidade de género manifestada”, a pessoas imigrantes. Sobre estas insuficiências, a Ação Pela Identidade tem vindo a alertar parlamentares de diferentes grupos políticos, acreditando que estas possam ser resolvidas sem necessidade de alterar esta lei.
A lei de direito à autodeterminação de género e à proteção das características sexuais não oferece nenhuma base jurídica para que sejam promovidas “terapias de conversão”, por isso não tem de ser alterada para que essas sejam proibidas. Espero que a deputada Cristina Rodrigues compreenda este equívoco a tempo, e que o Bloco de Esquerda e outros partidos, em iniciativas que estejam a preparar sobre este tema, demonstrem que há outros caminhos para garantir e reforçar estes direitos. Mais: esperemos que tal iniciativa, em semelhança à lei em vigor em Malta, salvaguarde os direitos de pessoas LGBTI+ especialmente vulneráveis, como é o caso de menores de idade ou pessoas com diagnósticos de saúde mental.
Nota: agradeço ao Santiago Mbanda Lima os contributos sobre a proteção das características sexuais, e sobre o impacto desta medida para as pessoas intersexo.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico