Abel Salazar e a pandemia
Quem entrasse nas instalações originais do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar não podia deixar de reparar num enorme cartaz com uma citação do génio Abel Salazar: “Um médico que só sabe de medicina nem de medicina sabe.” Era uma espécie de lema informal do instituto, inspirador da liberdade e de um universalismo de pensamento.
Há décadas, no século passado, os cinemas ainda não vendiam baldes de pipocas, a Coca-Cola tinha acabado de chegar à Metrópole e o acesso a água potável e electricidade no interior do país era por vezes, demasiadas vezes, um luxo apenas comparável ao número de Ferraris que circulavam sobretudo pelo Norte do país.
Tenho bastas recordações desses tempos aparentemente longínquos e que coincidiram com a minha juventude. No Porto, a minha cidade, há muitas magnólias e um orgulho de pertença, coragem, persistência, nobreza de carácter de quem recusa a rendição e que ainda hoje se pode encontrar. Havia solidariedade e inconformismo, havia coragem de afrontar aqueles que ameaçavam o modo de vida das gentes da cidade e pretendiam impor uma felicidade que lhes era estranha e, em certa medida, até incompreensível.
Nesses tempos, tinha acabado de ser criado (em 1975) o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Rapidamente se tornou um pequeno oásis de pensamento crítico, livre de algumas poeiras académicas tradicionais e então prevalecentes, e capaz de aglutinar alguns dos melhores professores e investigadores não só da cidade, mas também vindos das colónias e do estrangeiro. Alguns tinham sido ostracizados e perseguidos pelos poderes discricionários que prevaleceram muitas vezes para além do fim da ditadura. As instalações originais do “Abel Salazar”, nome do médico, professor e pintor (1899-1946), situadas num velhinho edifício junto ao Hospital de Santo António e paredes meias com o quartel da GNR, ainda hoje perduram. Lembro-me de subir a pequena escadaria que dava acesso ao edifício e entrar num corredor sombrio e frio onde, de cada lado, se situavam anfiteatros e laboratórios.
Mas havia duas coisas que qualquer aluno, professor, funcionário ou simples visitante não conseguia deixar de reparar ao entrar no instituto. Uma delas era o esqueleto do velhinho e, obviamente já falecido, “Leão do Palácio”. O Sofala, foi o nome que lhe deram, era de facto um leão que habitava uma pequena jaula numa espécie de zoo em miniatura que existia nos jardins do Palácio de Cristal, com uma vista única e pacificadora, sobre o rio Douro. Havia também o Chico, um chimpanzé, e outros mamíferos e aves que deslumbravam, faziam as delícias e algumas traquinices das crianças que tinham a sorte de os visitar em pequenas excursões familiares ao fim de semana. O Sofala estava lá há tanto tempo que parecia eterno. Fui contemporâneo dele durante cerca de 20 anos. Mas um dia, já velhinho, morreu, e só dei conta quando, já nos anos 80, me deparei com o seu esqueleto à entrada do “Abel Salazar”.
A outra coisa em que qualquer passeante daquele corredor reparava sempre, não era possível não o fazer quando se lá entrava, era um enorme e comprido cartaz colocado junto ao tecto, perto da entrada do corredor, e que consistia numa citação do génio Abel Salazar: “Um médico que só sabe de medicina nem de medicina sabe.” Era uma espécie de lema informal do instituto, inspirador da liberdade e dum humanismo e universalismo de pensamento que clamava pela imperiosa curiosidade e permanente busca e interesse pela compreensão do nosso mundo e de nós próprios. Era uma frase que acompanhava a vida de todos os que lá trabalhavam.
Ainda hoje me sinto privilegiado pela oportunidade que Abel Salazar me deu, através duma simples frase, entender o prazer e a beleza de conhecer e procurar entender muito para além de tudo o que nos rodeia qualquer que seja a nossa profissão e arte. Abel Salazar e a sua obra, sobretudo humanista e artística, acompanharam-me até hoje e, certamente, ficará para sempre como uma das âncoras que me ajuda a aportar com segurança em qualquer local desta viagem que todos fazemos e da qual apenas conhecemos o início.
Tornou-se quase um lugar-comum dizer que a personalidade e a obra de alguém que admiramos perdurarão para sempre e atingirão a imortalidade, independentemente do que isso possa significar para cada um de nós. Porém, esses casos são, não há como não constatar, escassos. A universalidade do pensamento e da obra, independentemente da arte e profissão, raramente alcançam essa força inspiradora, capaz de nos fazer mover mesmo nas circunstâncias mais difíceis, e que perdura para além da morte. Contudo, também não faltam, assim queiramos nós, exemplos daqueles que ao longo de séculos e em diferentes contextos e civilizações souberam deixar legados que nos alimentaram, inspiraram e perduraram até hoje. Saibamos nós reconhecê-los e utilizá-los na incessante busca pelo desconhecido, pelo que nos parece estranho, e sem a qual a nossa sobrevivência enquanto espécie será inevitavelmente mais curta. O que disse e praticou Abel Salazar faz parte do legado universal da Humanidade e aplica-se a todos e a todas as artes e profissões. Desde as mais antigas às chamadas de “novas”, passando, obviamente pela política e os seus profissionais.
Tal como um arquitecto, médico, engenheiro, sociólogo, historiador, escritor, pintor, etc., também um político que só sabe de política nem de política sabe. Saibamos nós reconhecê-los, sobretudo nos tempos sombrios que vivemos e que se repetem como as estações do ano. A actual pandemia, como qualquer outra situação de emergência e crise que teve lugar ao longo da História, ajuda-nos a ver mais claro e sem nevoeiros. Sejamos dignos de mais esta oportunidade.
Virologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa