Autonomia estratégica da UE: a missão de vida das gerações X e milenar
É razoável que as gerações nascidas depois de 1970 desejem um novo quadro geopolítico para os seus futuros. Livres de fatalismo e de cinismo, com pequenos passos, e com dificuldades e penitência, poderemos continuar a construir algo de inédito na história da humanidade.
O reforço da autonomia estratégica da União Europeia (AEUE) é a terceira prioridade da Presidência Portuguesa da UE. Tal não foi verbalizado na mais recente reunião do Conselho perante o novo neoexpansionista Presidente americano. O que revela a falta de consenso entre Estados-membros sobre a matéria. Mas contrasta com importantes intervenções de alguns líderes europeus e ignora, por ora, a surpreendente e inédita declaração conjunta da Espanha e dos Países Baixos que reafirma a AEUE como prioridade e abre a porta à revisão dos Tratados, “limitando – sempre que possível e desejável – os casos em que a unanimidade prejudica a capacidade de ação da UE”.
O que é afinal a AEUE? Quem e o que é que visa preservar? Como é que atualmente informa a política externa nacional – se é que informa? E porque é que urge promover um debate público sobre esta matéria?
O conceito surgiu com a aprovação da Estratégia Global para a Política Externa e de Segurança da UE em 2016, em plena crise dos refugiados, guerra civil na Síria e no rescaldo da invasão da Ucrânia. Desde então, são raras as conclusões do Conselho da UE que não incluem a expressão. A capacidade de agir autonomamente, onde e quando necessário, e com aliados, sempre que possível, começou por ser associada à eventual criação de um exército europeu. Mas a ideia tem evoluído em resultado de uma multiplicidade de ameaças ao projeto europeu – exigindo redução de dependências estratégicas e aumento da resiliência industrial em áreas específicas e mais sensíveis, como a saúde, defesa, espaço, transição digital, energia ou matérias-primas.
Em 2021, e no contexto da Agenda Estratégica da UE 2019-2024, parece claro que um comprometimento político a nível nacional com a AEUE implicará defender a revisão dos Tratados e promover a adoção de mecanismos que protejam os cidadãos da UE, as suas liberdades e o modo de vida europeu, mantendo a União, não obstante, aberta ao mundo.
As mais novas gerações de europeus (conhecidas por X e milenar) podem não saber o que é a AEUE mas vivem como se esta já fosse uma realidade. Seja a Juliana, uma jornalista apanhada de surpresa pelo fecho de fronteiras na Dinamarca, onde visitava uma amiga que lá fazia Serviço Voluntário Europeu; ou o Dídio, em Berlim, onde ensina português e trabalha com música e som para filmes. Há pelo menos duas gerações para quem o projeto europeu é um dado adquirido e para quem a AEUE significará a sustentabilidade do mesmo, a longo prazo.
E este é o contexto no qual se deve discutir a AEUE: o de milhões de famílias transnacionais, incentivadas pelo sonho europeu, proclamado anos a fio pelas instituições da União, a construir novos projetos de vida onde o significado de nação e de fronteiras pouco mais é do que uma lembrança histórica. É em nome desses europeus que reiteramos a importância fundamental da AEUE. Sem saudosismos transatlânticos acríticos, nem subserviência aos fluxos económicos e financeiros autocráticos, desrespeitadores dos valores essenciais do liberalismo democrático e dos direitos humanos.
A AEUE é o caminho que nos permitirá afirmar ainda mais a UE como um espaço de prosperidade económica e social, sem paralelo no mundo. Com uma economia que respeita os direitos dos trabalhadores, como nenhum outro dos seus competidores estratégicos. Com uma indústria de novos impulsos, tecnológico e verde, mas mais independente da criatividade na Califórnia (mantendo-se sua admiradora) ou das matérias-primas extraídas por empresas públicas chinesas (mantendo-se como seus leais clientes). Como destino aspiracional mais acessível, integrador e justo para milhões de migrantes de todo o mundo, sem campos indignos nem reeducações forçadas. E permitindo uma cidadania europeia mais transnacional, com menos obstáculos burocráticos a uma real liberdade de circulação, para superar, e derrotar, ideologias nacionalistas, dos populistas, e soberanistas, dos autocratas.
O nosso espaço de liberdades políticas e culturais, de culto da pluralidade e da diversidade, contrasta com políticas identitárias, destrutivas e infantilizantes, ou com ordens de pensamento único. Esta nossa cultura política e este projeto social europeu distinguem-se, e muito, daquilo que é oferecido aos cidadãos dos nossos aliados americanos ou dos nossos competidores filosóficos (Rússia, Turquia ou China).
A AEUE consolidará aquilo que a União já é, embora nem sempre percetível no discurso político ou na linguagem economicista de rankings de Estados-nação: a cidade que já está no cimo da colina. Senão, vejamos – a UE: é o maior mercado de mercadorias e de serviços; é o maior emissor e recipiente de investimento directo estrangeiro; é o principal parceiro económico de mais de 80 países (EUA são-no para pouco mais de 20 países); é o maior doador e financiador da ajuda ao desenvolvimento; importa dos países beneficiários da ajuda ao desenvolvimento tanto quanto EUA, Canada, Japão e China juntos; é o maior destino de turismo; é o maior empregador em Investigação & Desenvolvimento, em percentagem do emprego total; tem a maior marinha mercante, por registo de bandeira; lidera no número de médicos por 100.000 habitantes; tem a maior esperança de vida à nascença e a maior esperança de vida saudável, relativamente a EUA e China; dos três, é a UE que tem mais subscrições de banda larga fixa por 100 habitantes; tem, de longe, o mais baixo coeficiente Gini, que mede a desigualdade; foi o único dos três grandes a aumentar, entre 2014 e 2018, as despesas militares, em percentagem dos orçamentos gerais anuais; lidera, sistematicamente, o ranking de medalhas em todos os jogos olímpicos (mesmo excluindo desportos coletivos); tem seis dos dez países mais felizes do mundo; e 16 dos 30 territórios com maior índice de desenvolvimento humano; na sequência do “Brexit”, a UE caminha, consistentemente, rumo à liderança em várias valências dos mercados financeiros; e três das principais vacinas contra a covid-19 são resultantes de investigação em laboratórios seus.
É assim razoável que as gerações X e milenar desejem um novo quadro geopolítico para os seus futuros. Um quadro que não se esgote como mera bandeira na lapela da nova “Aliança das Democracias” americana. Que se emancipe de reedições do plano Marshall ou das rotas da seda – ou de caminhos marítimos para a Índia. Livre de qualquer tentativa que ressuscite o antigo sistema de estados tributários do Império do Meio. Que nos prepare para quando outros voltarem a fazer pivots para a Ásia ou para quando mostrarem a verdadeira face da “política externa para a classe média” (“América Primeiro” 2.0?). Que se expanda para além de alianças datadas no Atlântico Norte, olhando mais para o Mediterrâneo Oriental ou para o Atlântico sul. E que apoie a coligação Quad no indo-pacífico – onde a UE tem regiões ultraperiféricas, e onde territórios ultramarinos franceses elegem eurodeputados.
Assim, livres de fatalismo e de cinismo, com pequenos passos, e com dificuldades e penitência, poderemos continuar a construir algo de inédito na história da humanidade: a superação lenta de tribalismos, em nome de valores comuns e cosmopolitas, liderados pelos melhores de nós, em comunidade, sempre tendo presente os valores que criámos e demos ao mundo, como europeus, também às custas de uma história sangrenta, colonizadora, exploradora e opressora, dentro e fora do continente.
Portugal está a tempo de, ainda no contexto da Presidência do Conselho, ou fora dela, acelerar o envolvimento dos processos democráticos em tal debate com o objetivo de redefinir a sua própria política externa. Este processo pode implicar sacrifícios de alianças históricas, o abandono de prioridades de sempre, assim como o assumir de novas responsabilidades em novas subsidiariedades. Seja como for, não promover de todo tal debate contribuirá apenas para minar o sucesso da AEUE; e a felicidade e a prosperidade das mais novas gerações de europeus estão dependentes do sucesso da mesma. A AEUE oferece-nos um renovado quadro moral, e realista, que confere maior certeza, segurança e coerência institucional ao cidadão da UE.
A AEUE definirá o resto das vidas daqueles nascidos depois de 1970, menos socializados pelos amanhãs que cantam, podendo e devendo constituir-se como missão geracional. Por todas estas razões, garantir o sucesso da AEUE, em nome da pluralidade e da diversidade, é uma missão de vida para as gerações X e milenar; tal como ganhar a II Guerra Mundial, em nome da liberdade, ou promover primaveras políticas pela Europa, em nome da igualdade, o foi para as gerações anteriores. É o nosso tempo.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico