Nova biografia aprofunda a tragédia de Maria Callas

Recorrendo a uma vasta colecção de arquivos inéditos, The Hidden Life of Maria Callas, da norte-irlandesa Lyndsy Spence, não altera profundamente o que conhecíamos sobre a vida de La Divina. Mas, da relação abusiva com Onassis ao desprezo sentido pelos pais, acentua a dimensão da tragédia vivida nos bastidores dos palcos.

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A turbulenta e abusiva relação com o magnata Aristóteles Onassis foi uma das mais badaladas da década de 1960 Alain Nogues / Getty images

Como é de rigor perante uma figura da sua dimensão, a história da diva está já canonizada em mito. Maria Callas é a maior soprano da história, dona de uma voz inacreditável (talvez mais do que isso, ou não lhe chamassem La Divina), e a mulher que, por trás do glamour com que era invariavelmente retratada, escondia uma vida de privações e provações, marcadas por uma infância difícil, amores trágicos e a incapacidade de ser a, a toda a hora, aquilo que esperavam de Callas, a Divina. O mito contempla tanto a grandiosidade da sua arte como a tragédia da sua vida. Uma nova biografia, Cast a Diva: The Hidden Life of Maria Callas (The History Press), de Lyndsy Spence, edição a 1 de Junho, traz-nos novos dados. O mito não se altera. Só a dimensão da tragédia.

Escritora e historiadora norte-irlandesa, Lyndsy Spence teve acesso a um mundo íntimo de Maria Callas que, até agora, se encontrava escondido. A vida secreta de Maria Callas incluída no título é aquela que só confessava, secretamente, àqueles em quem mais confiava. Segundo relata a autora ao diário inglês The Guardian, o livro teve como fonte três “enormes” colecções de documentos inéditos que se encontravam dispersas em vários arquivos. “Entre os documentos estavam cartas de Callas revelando os seus pensamentos mais íntimos”, diz Lyndsy Spence.

Aristóteles Onassis, o magnata e playboy grego com quem manteve uma relação conturbada e que é habitualmente descrito como o grande amor da sua vida, e vice-versa  — foi por ele que Callas se separou do primeiro marido, Giovanni Battista Meneghini, sendo posteriormente trocada por Jacqueline Kennedy —, surge à luz dos novos documentos como protagonista de uma relação tóxica onde os abusos eram uma constante, levando-a, em 1966, a temer pela sua vida. “Não quero que me ligue e comece outra vez a torturar-me”, escreveu Callas numa das cartas à sua secretária. Lyndsy Spence refere que, numa carta de uma amiga próxima da soprano, aquela dá conta de Onassis drogar Callas para se aproveitar dela sexualmente.

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Callas em 1959 ullstein bild / getty images

Dir-se-á que as revelações contidas nos novos documentos não alteram a retrato de Callas, mas aprofundam o drama que parece tê-la rodeado durante toda a vida. Preterida nas preferências da mãe na infância, que concentrava todas as suas atenções na irmã mais velha, Yakinthi (era mais bonita, mais magra, mais sociável e popular, descreveria Callas), voltando-se para ela apenas quando chegou o sucesso artístico e, principalmente, financeiro, Maria Callas parece ter atravessado a vida com uma auto-estima dilacerada e uma constante desconfiança sobre o afecto dos outros. De resto, os seus 53 anos no planeta, desde o nascimento em Nova Iorque, em 1923 (os pais regressariam à Grécia na década seguinte), até à sua morte em Paris, em 1977, foram uma constante reiteração no que diz respeito à sua visão de si e dos outros.

"Fui uma tola, por acreditar"

Giovanni Battista Meneghini, que surge descrito em documentários e biografias como um homem profundamente dedicado e apaixonado por aquela que foi sua mulher entre 1949 e 1959, é descrito por Callas numa das cartas como uma sanguessuga que “se faz passar por milionário quando não tem um centavo”: “O meu marido continua a importunar-me depois de ter roubado metade do meu dinheiro ao pôr tudo em seu nome depois de nos casarmos… Fui uma tola… por acreditar nele”. Quanto à sua mãe, Litsa, devota-lhe um profundo desprezo, iniciado na infância, quando a obrigava a actuar em público para compor o orçamento familiar, prolongado na adolescência, quando, durante a ocupação nazi da Grécia, aquela a empurrava para os braços de soldados nazis, numa nada discreta tentativa, conta, de a prostituir.

Quando chegou o sucesso, sofreria chantagens da mãe, que ameaçava contar detalhes menos abonatórios da sua vida caso a filha não lhe desse dinheiro, e tinha que lidar com as mentiras do pai, George Kalogeropoulos (o apelido foi simplificado para Callas nos Estados Unidos), em busca do mesmo fim. “Escreveu-lhe uma carta, fingindo estar a morrer no hospital de um asilo para pobres, numa tentativa de conseguir algum dinheiro”, relata Lyndsy Spence.

Visita a Portugal

No seu período áureo, nos anos 1950, década em que visitou Portugal para, em 1958, no São Carlos, em Lisboa, interpretar a Violetta de La Traviata, de Verdi, ficou célebre a rivalidade com a soprano italiana Renata Tebaldi. A imprensa foi dando conta de troca de galhardetes entre ambas, menorizando-se mutuamente, mas também de declarações em que Maria e Renata atribuíam tais declarações a maquinações dos jornais e manifestavam apreço e admiração uma pela outra. Em privado, porém, Callas queixava-se que Tebaldi só ganhara estatuto por se inventar enquanto sua rival. “Estou francamente farta de toda história nauseabunda da pobre Renata… Deus não aprova estes métodos publicitários e estas armas usadas contra mim”.

Maria Callas morreu de ataque cardíaco no apartamento parisiense onde vivia quase em isolamento. Apesar de não ter abandonado os palcos, a sua carreira operática terminara doze anos antes, em 1965, no Covent Garden, em Londres, com a Tosca de Puccini. Muito se especulou ao longo do tempo quanto à degradação da sua voz nos últimos anos de carreira. As hipóteses adiantadas foram diversas, da dependência de sedativos à incapacidade de lidar com a pressão de ter que ser magnífica e infalível, noite após noite. A biografia de Lyndsy Spence junta uma nova hipótese. Segundo a autora, os documentos relevam que Callas sofria de um distúrbio neuromuscular que se começou a manifestar ainda na década de 1950, mas que os médicos, à época, desvalorizaram — Spence diz ter confirmado este novo dado com o neurologista que a acompanhou nos últimos anos de vida. Uma vez mais, não se altera a realidade da Callas que conhecíamos. A sua vida trágica e gloriosa “só” se torna um pouco mais trágica. 

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