Comer pescado pode ajudar a equilibrar a dieta alimentar e o ambiente
Para definir sustentabilidade ambiental do pescado, existe uma multitude de variáveis e métricas como a pegada de carbono, a posição da espécie na cadeia trófica, o estado do stock, a arte de pesca ou o tipo de produção de aquacultura e os respetivos impactos ambientais.
Um artigo recente do PÚBLICO afirma que “temos de comer menos peixe, mas variar mais na escolha de espécies” por uma questão de sustentabilidade e deu-nos uma excelente oportunidade para aprofundar o assunto, sobretudo porque não sustenta a afirmação com todo o conhecimento científico existente sobre o tema nem explica o que se entende por sustentabilidade.
Quando falamos de peixe (ou pescado, se quisermos ser mais precisos e incluir todos os organismos aquáticos além do peixe, como crustáceos, cefalópodes ou bivalves), estamos a referir-nos a animais selvagens, provenientes da pesca, ou que foram criados em aquacultura. Trata-se de um alimento que inclui muitas espécies e diferentes métodos de produção, estando, por isso, associado a uma complexidade superior à dos sistemas de produção de animais terrestres. Para definir sustentabilidade ambiental do pescado, existe uma multitude de variáveis e métricas como a pegada de carbono, a posição da espécie na cadeia trófica, o estado do stock, a arte de pesca ou o tipo de produção de aquacultura e os respetivos impactos ambientais. O ideal seria usar uma combinação de diferentes variáveis.
O artigo começa por relacionar sustentabilidade com origem geográfica, indicando que “2/3 do peixe que comemos é importado” e assumindo que o peixe de aquacultura, “pela distância geográfica onde é criado e pelos impactos que produz no ambiente, liberta uma enorme pegada carbónica”. A origem do peixe não é um critério que por si só defina sustentabilidade, por um lado porque o transporte representa uma pequena parte da pegada de carbono dos alimentos, e por outro porque não temos evidência de que o peixe produzido em Portugal tenha uma pegada de carbono inferior à do peixe importado, seja ele proveniente da pesca ou de aquacultura.
Usando a métrica da pegada de carbono, que quantifica gases com efeito de estufa (GEE) para definir sustentabilidade, o artigo é pouco preciso quando diz que apanhar um quilo de peixe selvagem equivale em média a “2% da quantidade de CO2 necessária para a produção de um quilo de carne vermelha”. A média será um pouco superior, cerca de 5%, e apenas se aplica ao peixe e à carne vermelha porque produzir um quilo de camarão pode ser pior do que produzir um quilo de frango. Esta métrica também não permite concluir que será melhor, em termos ambientais, produzir peixe selvagem do que peixe de aquacultura.
No caso do salmão, a terceira espécie mais consumida na União Europeia e uma das espécies mais consumidas em Portugal, a pegada de carbono é relativamente baixa quando comparada com outras espécies de aquacultura como o camarão, ficando ao nível de peixe selvagem de grandes pelágicos, como o atum. A produção global de aquacultura cresceu na última década 28%, e não 97% como afirma o artigo (tendo passado de 59 milhões de toneladas em 2010 para 82 em 2018), mas o salmão representa apenas 2% da produção global em volume.
A aquacultura é dominada por peixes de água doce, como a carpa, bem como bivalves e algas, que representam 75% da produção global, e está concentrada na Ásia, onde contribui para a segurança alimentar da região.
O artigo refere ainda que a Sciaena, uma ONG portuguesa que se dedica aos assuntos do meio marinho, sugere uma lista de espécies que podem ser consumidas e outras cujo consumo devemos evitar. No entanto, não são apresentados quaisquer critérios para esta distinção. Afirma que o bacalhau é uma espécie a evitar por representar “quase metade do valor do nosso consumo per capita de peixe e por contribuir com uma pegada de carbono considerável”. Usando novamente a métrica da pegada de carbono e sabendo que esta é relativamente baixa no caso do bacalhau, equivalente à de outros peixes pelágicos e muito abaixo da dos crustáceos, a afirmação é incorreta e pode ter um efeito contraproducente se o consumidor quiser orientar a sua dieta no sentido de contribuir com a menor quantidade de GEE possível. O polvo também é sugerido como uma espécie a evitar, mas recentemente o SeafoodWatch (o maior programa de base científica que emite recomendações sobre o consumo de pescado com base no estado do stock, impactos da arte de pesca no ecossistema e noutras espécies, e medidas de gestão da pescaria) incluiu o polvo capturado em Portugal com armadilhas (covos e alcatruzes) como uma boa alternativa. Por outro lado, o artigo sugere o tamboril como uma espécie a consumir quando sabemos que uma parte considerável é capturada com redes de arrasto, que é a arte de pesca mais destrutiva por não ter qualquer tipo de seletividade, e destruir o ecossistema que “arrasta”.
Por fim, o artigo afirma que “é fundamental reduzir o consumo per capita de peixe selvagem e de aquacultura (em Portugal e a nível global)”. Seria o mesmo que dizer que temos de reduzir o consumo de arroz em Portugal e a nível global só porque é elevado. Em Portugal come-se muito pescado (61 quilos per capita em 2018), um padrão que se mantém desde os anos 90, sendo mais do dobro do que se come em média na União Europeia (24 quilos per capita em 2018). Em termos absolutos, o valor é pouco significativo, pelo reduzido tamanho da população portuguesa. Merece, porém, ser discutido se pensarmos em termos individuais e se tivermos em consideração a escassez de recursos do nosso planeta.
O consumo de peixe, como o de qualquer alimento, deve ser analisado no contexto dum regime alimentar e de acordo com os requisitos nutricionais. O peixe é uma fonte de ácidos gordos essenciais polinsaturados, como ómega 3, essenciais ao organismo e obtidos exclusivamente a partir da alimentação por não os conseguirmos produzir, bem como micronutrientes (por exemplo, vitamina D, iodo e selénio). Uma dieta equilibrada, em termos nutricionais e ambientais, deve conter maioritariamente alimentos de origem vegetal e incluir, como referência média, 28 gramas (0 – 100 gramas) de pescado por dia, equivalente a uma/duas porções por semana.
O artigo foi publicado no âmbito do projeto “Todo o Peixe é Nobre”, financiado pelas EEA grants, que alerta para a necessidade de alterar padrões de consumo de pescado, dando a conhecer variedades menos comuns e mais sustentáveis. No entanto, espécies menos comuns não são necessariamente mais sustentáveis, sendo sempre necessário indicar os critérios usados para definir o que se entende por “sustentabilidade”.
Essa definição é hoje particularmente relevante quando o documentário Seaspiracy, lançado recentemente na Netflix e que se tornou um dos mais vistos da plataforma, defende que só podemos garantir o futuro da vida marinha se deixarmos de comer peixe. O documentário parte do pressuposto de que nenhuma produção de peixe pode ser garantidamente 100% sustentável. No entanto, não apresenta critérios objetivos, mas apenas conjeturas sem base científica, e não demonstra quais seriam as consequências ambientais de adotarmos todos uma alimentação sem produtos de origem animal. Por exemplo, quais seriam as necessidades acrescidas de água, herbicidas e área arável para produzir a mesma quantidade de calorias proveniente do pescado só com vegetais? E seria possível desta forma garantir que a população ingere nutrientes essenciais praticamente só existentes no pescado? Se quisermos atingir a neutralidade carbónica em 2050, vamos ter certamente de assumir compromissos para diminuir a contribuição da alimentação para as emissões de GEE de origem humana, atualmente atingindo cerca de 34%.
O consumo histórico de pescado em Portugal e o facto de os portugueses “direcionarem insistentemente as suas escolhas para meia dúzia de espécies”, ainda assim bem mais diversificada do que noutros países, podem representar uma vantagem se soubermos quais são essas espécies, qual é o seu valor nutricional, e se as consumirmos de uma forma eficiente, isto é, aproveitando todo o potencial de cada animal. A região geográfica onde vivemos, a cultura ou até a religião que seguimos influenciam a dieta e as nossas opções diárias sobre o que pomos no prato. Miguel Esteves Cardoso descreve o ato de comer “como uma celebração da morte ou, o que vem dar ao mesmo, um consumo da vida. Outros seres, vegetais ou animais, morrem para que nós continuemos vivos” (Em Portugal Não se Come Mal, Assírio & Alvim, 441 páginas, 2008). Podemos acreditar que comer é uma emoção, ou um problema, quando se tem um orçamento limitado para gerir. Mas comer é sempre uma opção ambiental porque tudo o que comemos é proveniente (ainda) do ambiente.
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