Moçambique: padre e investigador alerta para recrutamento de crianças pelos combatentes

“Algumas pessoas que foram aos acampamentos de insurgentes encontraram crianças”, diz Latifo Fonseca, padre em Pemba, capital de Cabo Delgado. O recrutamento de crianças pode “perpetuar a guerra”, avisa.

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As crianças deslocadas serão quase metade dos 700.000 deslocados que a violência já provocou Reuters

Há cada vez mais indícios de recrutamento de crianças por parte dos grupos jihadistas que há mais de três anos espalham o terror no Norte de Moçambique, avisa Latifo Fonseca, padre da Diocese de Pemba, capital da província de Cabo Delgado.

“Algumas pessoas que foram aos acampamentos de insurgentes encontraram crianças”, disse o missionário e investigador do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) moçambicano, numa entrevista à Lusa, referindo-se a relatos que ouviu de quem já foi raptado pelos grupos armados e conseguiu fugir.

As descrições alinham-se com outras de mães cujos filhos desapareceram durante a investida de insurrectos contra as suas aldeias. “Temos medo de que estejam a usar essas crianças”, a entrar na idade da adolescência, doutrinando-as em práticas extremistas e de violência armada, tirando partido das suas “habilidades e inteligência fresca”, afirmou o investigador.

A partir dos relatos recolhidos, Latifo Fonseca nota que parece existir uma estratégia geral de recrutamento em que os novos combatentes passam por diferentes acampamentos e realizam treinos que podem durar até dois anos. “Achamos que as crianças também possam ser instrumentalizadas”, neste processo.

O investigador diz que é necessário “pensar em como resgatar” estas crianças e adolescentes que se encontram nas bases dos jihadistas, apontando que é necessário começar por recolher informação sobre os esconderijos dos grupos armados.

“Nem todos aqueles [que lá estão] são culpados, muitos foram raptados”, sublinha. “Devem ser muitas crianças porque há muitas mães a chorar pelo desaparecimento [delas]. Há muitas mães que se queixam.”

Segundo Latifo Fonseca, pode haver menores a ser utilizados “como espiões”. “No dia-a-dia pensarmos que estão a vender amendoins” pelas ruas das cidades e vilas, mas “são aqueles que têm informações”, exemplificou.

Ao mesmo tempo, o rapto de raparigas surge associado a casamentos forçados com membros dos grupos armados. O risco que se afigura para o futuro social da região é de que as crianças “poderão voltar mais extremistas”.

“Não tiveram capacidade de assimilação da razão num convívio familiar saudável e a única realidade que vêem é a da guerra”, disse Latifo Fonseca.

O recrutamento de crianças pode “perpetuar a guerra, porque se forem nativos, não terão outro lugar” para estar e “caso a guerra termine, mesmo tendo amnistia, por exemplo, não terão condições para ser bem acolhidas”.

Trata-se de um processo “diferente” daquele por que passa “um adulto que, quando sai, sabe que, um dia, viveu saudável”, descreveu. “Temos de cuidar disso” e, se houver forma, “tentarmos resgatar” quem se esconde nas matas, reafirmou.

“Nenhuma mãe vai denunciar que o filho é terrorista – porque isso é próprio do sangue de uma mãe – e ele continuará convivendo connosco enquanto faz parte” dos grupos armados.

“Temos de dar mais atenção ao assunto, para o eliminar pela raiz, senão estes [novos recrutas] vão ser piores que os primeiros terroristas”, referiu o padre em relação às crianças que estão nos acampamentos rebeldes das matas de Cabo Delgado, mas também em relação às deslocadas que chegam a pontos seguros da província. “Elas também podem constituir” um avolumar de problemas, criando insurrectos “piores do que aqueles que estão lá” nas matas.

Latifo Fonseca defende que não basta inscrever as crianças nas escolas “e deixar assim” o assunto. Mesmo as crianças deslocadas, que se calcula sejam quase metade dos 700.000 deslocados, “devem ter acompanhamento” na forma como ocupam o tempo, procurando ocupações extracurriculares, como o desporto, por exemplo.

“É fundamental incluirmos aqui antropólogos, sociólogos e religiosos para que estas crianças, que parece estar num ambiente saudável, tenham um acompanhamento directo”, advertiu. Caso contrário, “podem tornar-se rebeldes”. Para o evitar, o trabalho a realizar deve mobilizar todos os membros de cada comunidade, sustenta.

As Nações Unidas contabilizam actualmente 700 mil deslocados do conflito que dura há três anos e meio, mas temem que esse número continue a subir nas próximas semanas se não se travar a violência, “podendo superar a barreira do milhão em Junho deste ano se a violência não parar”, a propósito dos ataques das últimas semanas no distrito de Pemba.