A hagiografia de Sério Fernandes, homem-artista

O professor Sério Fernandes foi, desde a primeira aula, um homem-artista. Falava na inutilidade dos tripés, dos charriots, das dollies. Do cinema enquanto máquina de fazer filmes. E não se referia aqui à indústria, mas ao cânone.

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O simples acto de atribuir a palavra artista a alguém foi sempre tido como pejorativo. Pessoas à minha volta, vindas de múltiplos caminhos da vida, pareciam associar a palavra a um afastar do que era reconhecido como o único caminho válido a seguir, aquele único padrão de felicidade. Pelos vários buracos da minha infância, por onde entravam as palavras dos adultos, ouvia os comentários que oficializavam esse aprisionamento. O artista fazia justiça pelas suas próprias mãos. Era um trapaceiro, um zé-ninguém que raramente possuía algum talento.

No entanto, mesmo que não o fosse, era ainda assim artista se não conseguisse ou não quisesse capitalizar o seu modo de estar que, aos olhos de outros, para se ver bem-sucedido, implicava a entrada no mundo. Por outras palavras, exigiria uma comunhão com os outros.

O professor Sério Fernandes foi, desde a primeira aula, um homem-artista. Falava na inutilidade dos tripés, dos charriots, das dollies. Do cinema enquanto máquina de fazer filmes. E não se referia aqui à indústria, mas ao cânone. As aulas tinham a duração, se bem me recordo, de quatro a cinco horas semanais. Horas estas ocupadas a ver os seus trabalhos, a ouvir o seu discurso hiperbólico, todos nós forçados, enquanto colectivo, a mapear a biografia de um homem que queria leccionar a liberdade de espírito, a energia artística sem raízes.

O que nos dividia a todos era se, no final de contas, ele o conseguia fazer ou não. Afundado no que parece ser um cadeirão, gato ao colo, Fernandes fala para a câmara de Rui Garrido, gesticulando com as mãos e fazendo uso do seu muito reconhecido discurso repetitivo e unidimensional. A uma determinada altura, diz-nos algo que alguém lhe disse uma vez, “O Sério tem aqui o cinema todo. Está aqui tudo. Está aqui o cinema todo”, repetindo estas mesmas palavras megalómanas mais umas quantas vezes, quase para se assegurar do que está a dizer e não tanto para nos convencer do facto.

Ele nunca me pareceu ser o tipo de pessoa que procura convencer. As suas certezas já eram as únicas que existiam. Sempre foi essa a minha luta com ele. Mas Sério Fernandes - Mestre da Escola do Porto, o primeiro filme de Rui Garrido, de 2019, também ele aluno do professor, só fala do mestre. Onde se poderiam reunir os olhos e vozes de outros sobre o homem que talvez nós nunca conhecemos, faltou o diálogo para tal florescer. A imagem que resta é a do professor apaixonado que nos disse uma certa tarde que seria possível filmar sem equipamento. “Usa os olhos!”, ouvi-o proclamar uma vez. “Os olhos, professor?” “Os olhos, pois. Não tens que os comprar. Focam e desfocam na mesma.”

Nos momentos que não se dedicam à sua intimidade, aos seus animais, à casa perto da praia de Francelos ou à quinta em Mirás, o filme rapidamente se torna um olhar sobre o Porto como a cidade da luz, a cidade onde se pode melhor filmar, ou seja, a cidade onde o cinema pode sempre continuar a nascer. A cidade onde realizou e produziu o felizmente celebrado Chico Fininho (1982), um precioso olhar-cérebro do pós-25 de Abril instilado no “mais freak da cantareira” de carne e osso (Vítor Norte), imaginado por Rui Veloso na canção que descortina a sua carreira no início da década de 80.

Daí em diante, e após uma travessia pelo mundo da publicidade na agência OPAL, a criação da produtora Bei Film, que elevou de uma pequena sala à ocupação de um andar inteiro de um edifício - a única sediada no Porto na altura -, o seu processo artístico começa a afunilar-se até chegar aos filmes que ainda faz. Filmes que, para ele, ou representavam uma transição de algo, um diferente andar em frente, ou então eram apenas diários-cartas de alguém que procura no registo um existir. A lua, o sol, o vento. Naquele dia, naquele lugar. A pertença deste ritual, a roçar o sagrado e eterno pela poesia desse pensar. E depois a sua libertação, como o fez com Odisseus (1987), empoleirando-se num barco e atirando metade das bobines do filme ao mar.

Rui acarinha esse homem com este seu primeiro filme. O homem que regista tudo. É, no fundo, o que este faz. Cria, registando, dando vida à inesgotabilidade da memória romântica. Acarinha aquele ouvir lento do jovem sentado no banco de jardim tendo à sua frente aquele que lhe supera em idade e olhar. O artista inclui-se aí, aquele que tira gosto em partilhar a alegria que existe na criação do seu estado de ser. Como Rui confirmou à Lusa, aquando da estreia comercial do filme nos cinemas: “Muitas vezes não tenho controlo (...) Muito do que está no filme está porque ele quer mostrar e é importante para ele.”

O filme inicia-se com a promessa da oferta biográfica até se debruçar em caracol e morfar a investigação, que olhara de fora para dentro, na criação do objecto que para fora já nada vê. O filme de um, a criação do outro. Cada vez o compreendo melhor. O homem-artista consegue despertar o pensamento noutros. Gostaria de lhe perguntar como se sente. Apercebeu-se do que tem acontecido ao mundo? De quão doente ficou? No final de Chico Fininho, o sol raia no horizonte e os actores, exaustos, representados no ecrã como na vida da rodagem, alindados depois pelo tempo construído na mesa de montagem, têm à sua frente uma rua que não é um destino.

E, seja como for, já vão demasiado exaustos para o descobrir. O cinema também anda exausto. Dividido entre si e os filmes que dizem fazer parte de si mesmo. Mas onde há estrada, há caminho para o inesperado. E não nos compete a nós avaliar caminhos percorridos. Se convertido num filmar com os olhos, o cinema provavelmente poderá ser como um espelho sujo do comboio, o sono em movimento de que Agustina Bessa-Luís falava, mas ao contrário. A implosão do desejo furioso. E depois a vida suspendida. Uma só nota, estendida. Um exercício artístico-cinematográfico das aulas do professor. A criação de um só plano estático, que calava tudo o resto e reconciliava o mundo. Ou assim ele o vê. 

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