“A literacia em saúde é uma questão de saúde pública”
A poucos dias do lançamento da websérie “Saúde em dia”, a iniciativa do Público e da Lusíadas Saúde que procura promover a literacia em saúde, Eduarda Reis, Presidente do Conselho Médico da Lusíadas Saúde, faz uma radiografia geral dos cuidados de saúde em Portugal e alerta para o impacto que o conhecimento fidedigno tem nos resultados e qualidade dos cuidados de saúde.
Que impacto está a ter a pandemia de covid-19 nas outras áreas da saúde que não estão directamente ligadas com o vírus?
O foco na pandemia covid-19, quer do ponto de vista emocional como operacional, fez com que fossem esquecidas e postergadas todas as restantes necessidades, nomeadamente a saúde e a doença para além da covid. O impacto de toda esta situação ainda só estamos a tentar prevê-lo, de uma forma não só geral, mas particularmente em saúde, sabemos que muito ficou para trás, diagnósticos por fazer de forma atempada, seguimento das situações crónicas prejudicando toda uma série de situações que nos vão agora surgindo e que temos de estar preparados para dar resposta a par da pandemia, que ainda está presente e não sabemos por quanto tempo.
Acredita que o acesso à saúde foi dificultado neste último ano?
Acho que ninguém tem dúvidas que neste último ano o acesso à saúde piorou a níveis muito preocupantes, facto para o qual concorreram vários factores. Quase todo o sistema de saúde, sector público ou privado, parou praticamente a actividade electiva para se focar no combate à nova doença, em si muito desafiante e consumidora de energia e recursos, quer pela sua transmissibilidade, quer pelo desconhecimento da própria doença ou pela sua gravidade e mortalidade. Em relação às situações de urgência, além dos sintomas relacionados com a covid-19, os serviços de saúde foram evitados, tendo sido proteladas pelos próprios pacientes com medo de ir à urgência. No Grupo Lusíadas houve uma quebra de afluência às urgências na ordem dos 40% de uma forma geral e com uma descida mais acentuada na área da pediatria.
Qual tem sido o papel dos profissionais de saúde – que não tratam directamente da covid-19 – neste combate aos desafios criados pela pandemia?
Estes profissionais de saúde têm o desafio de manter a saúde e o controlo das outras doenças dos restantes cidadãos. Numa tentativa de aproximar o longínquo, por necessidade epidemiológica de controlo da pandemia, surgiu a telemedicina como alternativa às consultas presenciais. A telemedicina tem vindo a mostrar que é uma forma de entregar cuidados de saúde, que tem o seu lugar, não retirando ou substituindo a medicina presencial. Mais do que uma mudança de canal no acesso, creio que tanto profissionais como doente o podem ver como um amplificador de cuidados e de acesso. A tecnologia deve ser usada onde é mais útil, nomeadamente na capacidade de gerar cuidados de proximidade e de um verdadeiro acompanhamento centrado na vida do doente.
O medo do vírus levou a população em geral a descurar os cuidados de saúde?
O medo do vírus afastou as pessoas dos serviços de saúde. A mortalidade no ano de 2020 em Portugal foi 10,6% mais elevada do que a média dos cinco anos anteriores, segundo o INE, e só cerca de metade dos óbitos em excesso foram por covid-19. Os doentes chegaram tardiamente aos serviços de urgência em situações clínicas que são tempo-dependente, como no caso do enfarte agudo do miocárdio, do acidente vascular cerebral ou da sépsis. Isto fez com que tenha havido seguramente mortes e sequelas evitáveis. Em relação às doenças crónicas houve situações de deficit de acompanhamento que provocaram agravamento da doença, como é o caso da insuficiência cardíaca. As doenças neoplásicas deixaram de ser rastreadas e, mesmo quando sintomáticas, chegaram mais tardiamente aos serviços de saúde, em situação evolutiva mais avançada e, portanto, de prognóstico mais reservado. E isto são só alguns exemplos. Depois há o problema da saúde mental. Já em pré-pandemia era uma área com pouca resposta e, diria mesmo, muitas vezes desadequada. Acredito que irá ter um agravamento do número de pessoas a necessitar de ajuda nesta área.
Considera que a desinformação e a contra-informação ajudaram a promover este comportamento?
Sem dúvida. De facto, o confronto com o desconhecido e com um inimigo invisível justifica o medo, mas a desinformação veiculada das mais diversas formas teve aqui um papel preponderante, levando a comportamentos baseados em informação, não só não fundamentada, como parcelar. O impacto desta desinformação leva as pessoas a tomarem decisões e adoptarem comportamentos que podem pôr em perigo a saúde individual e colectiva.
Acredita que os médicos e os outros profissionais da saúde devem ter um papel activo na promoção da literacia em saúde?
Os médicos e restantes profissionais de saúde têm uma responsabilidade e um papel fundamental na promoção da literacia em saúde. A promoção da literacia em saúde tem o potencial de melhorar os resultados e a qualidade dos cuidados de saúde. As pessoas têm o direito a informação fidedigna e fundamentada e a desinformação na área da saúde é indiscutivelmente reprovável, diria mesmo que deveria ser condenável, na medida em que não só prejudica o indivíduo como toda a sociedade. A literacia em saúde é uma questão de saúde pública na qual a Lusíadas Saúde está absolutamente empenhada e que é um pilar do nosso centro de conhecimento, o Lusíadas Knowledge Center. É com base neste objectivo que atribuímos máxima importância a iniciativas de promoção de literacia em saúde (ver caixa), como esta parceria com o Público. “Saúde em dia” é uma forma de aprendermos a colocar a nossa saúde sempre em primeiro lugar.