Sputnik V, a vacina contra a covid-19 desejada por uns, desprezada por outros
É a vacina mais sensível em termos geopolíticos, para além das chinesas, que a Agência Europeia de Medicamentos tem de avaliar. Mas há muita vontade na UE que seja aprovada, incluindo de industriais e líderes de Governo.
É tema de conversa entre líderes europeus, já foi alvo de controvérsia científica. É mais desejada fora da Rússia do que no seu país. Dentro em breve pode ser uma das vacinas contra a covid-19 aprovadas na União Europeia.
A vacina russa Sputnik V vai ser aprovada na União Europeia?
O Presidente francês, Emmanuel Macron, e a chanceler alemã, Angela Merkel, discutiram com o Presidente russo, Vladimir Putin, os termos de uma possível cooperação na área das vacinas contra a covid-19 na terça-feira, durante uma videoconferência. Isto quer dizer que falaram da Sputnik V, a vacina russa que iniciou o processo de avaliação contínua da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), com o objectivo de vir a juntar-se ao arsenal de vacinas contra o coronavírus da União Europeia.
A EMA é uma agência científica independente, e, apesar de tudo o que se possa ouvir e ler, deverá fazer o seu trabalho de avaliação sem interferências políticas. Emer Cooke, a directora da EMA, disse que em Abril a agência vai à Rússia, visitar os laboratórios do Centro Nacional de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya, onde foi desenvolvida a vacina, e as fábricas onde está a ser produzida.
“A vacina russa será submetida aos mesmos critérios de avaliação que todas as outras”, tem repetido Emer Cooke. No entanto, até comissários europeus se têm excedido nas suas funções, como quando Josep Borrell, o alto- representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, pediu em Moscovo à EMA que aprovasse a Sputnik V.
Mas o facto de a chanceler Angela Merkel estar a abordar a questão da vacina com Vladimir Putin soará menos estranho, se se souber que o pedido de entrada da Sputnik V na UE é apresentado por uma farmacêutica alemã, a R-Pharm – que espera ser o fabricante da vacina russa na Alemanha.
Ouve-se muito falar do interesse dos russos por fábricas na Europa, para fabricar a Sputnik V. Porque é que isto acontece? Se for aprovada, não vem já feita, não a importaremos já feita, como as outras vacinas?
Há fortes constrangimentos à produção da vacina Sputnik V na Rússia, e, por isso, o seu modelo de exportação assenta em construir uma rede internacional de fábricas para abastecer não só os países onde se localizam, como para exportarem para outros países onde a vacina seja aprovada.
Na verdade, a falta de capacidade industrial na Rússia é tão grave, noticiava o New York Times esta semana, que a Rússia está a importar Sputnik V fabricada na Coreia do Sul para abastecer o seu mercado. E tem planos para fazer o mesmo com fábricas na Índia – onde tem contratos de produção com três empresas e está à espera, a todo o momento, de ser aprovada pela agência reguladora do medicamento.
Na Europa, além da Alemanha, anunciam-se acordos para produzir a vacina em Itália, provavelmente na Sérvia, talvez em Espanha.
Foi recentemente anunciado que a Rússia pretende produzir 178 milhões de doses da Sputnik V e de duas outras vacinas contra a covid-9, chamadas “EpiVacCorona” e “CoviVak”, até ao fim de Junho, noticiou a Deutsche Welle. Mas está a ser difícil cumprir os objectivos – tal como a União Europeia está a ter dificuldade com a produção de vacinas, aliás.
A escassez da produção de vacinas na Rússia terá sido um factor que fez com que Vladimir só se tenha vacinado a 23 de Março, disse o Kremlin. Até Junho, os planos são para imunizar 30 milhões de pessoas, e para isso seria necessário produzir pelo menos 60 milhões de doses, fora a quantidade extra destinada à exportação. Segundo o Fundo de Investimento Directo Russo, que está a fazer a comercialização da Sputnik V, a população total das nações interessadas em comprar a vacina russa já chega a 1,5 mil milhões de pessoas.
Mas, de acordo com o New York Times, apenas 4,4% da população russa se vacinou contra a covid-19. No Espaço Económico Europeu (os países da União Europeia mais a Islândia, Liechtenstein e Noruega), 13,5% da população com mais de 18 anos já tomou a primeira dose da vacina (mas apenas 5,7% tomou as duas doses), segundo os dados mais recentes do Centro Europeu de Controlo e Prevenção das Doenças.
Porque é que os russos não estão a tomar a sua própria vacina?
Há uma grande desconfiança dos russos em relação à vacina, explicou ao PÚBLICO Kadri Liik, do Conselho Europeu de Relações Internacionais (ECFR, na sigla em inglês), especialista em política russa e nas relações da Rússia com o Ocidente. “É impressionante, os dados das sondagens disponíveis são impressionantes, mostram que mais de 50% da população em geral e dos médicos não confiam na vacina. É um valor mais alto do que em qualquer outro país.”
Os russos desconfiam da sua vacina, porque foi lançada com muita propaganda, e os primeiros ensaios clínicos foram criticados pelos cientistas ocidentais pela sua falta de rigor. “As pessoas não confiam na vacina, porque foi lançada de uma forma altamente politizada. E isto liga-se com o ressentimento da população russa com a forma como o seu Governo actuou durante a pandemia”, explica Liik. “Mas isto é algo por que Moscovo só se pode culpar a si própria”, considera a analista estónia.
Isso quer dizer que a vacina não é de confiança?
A vacina parece ser de boa qualidade e os resultados dos ensaios clínicos de fase 3, publicados na revista médica The Lancet, não suscitaram críticas da comunidade científica.
É uma vacina do mesmo tipo da AstraZeneca ou da Janssen, uma vacina de vector viral, que usa dois adenovírus modificados de forma a não causarem doença para introduzir o gene no organismo que comanda a produção da proteína da espícula do SARS-CoV-2, e desta forma treinar o sistema imunitário para o reconhecer, se houver infecção. Um adenovírus é usado na primeira dose, e outro na segunda – esta estratégia poderá permitir aumentar o efeito da vacina.
Estão a decorrer testes para administrar a vacina Sputnik V em conjunto com a da AstraZeneca, para tentar potenciar os efeitos de ambas.
Já há países da Europa onde a Sputnik V está a ser administrada?
Sim. A Sérvia já usa a vacina russa, e a Hungria foi o primeiro país da União Europeia a aprová-la, ainda antes de a EMA a ter autorizado. Entre o fim da semana passada e esta semana, o Governo da Eslováquia caiu, porque foi conhecido um acordo secreto para comprar a vacina Sputnik V – o primeiro-ministro encomendou dois milhões de doses em segredo, sem informar sequer os três outros partidos que formam a coligação.
Esta semana, o gabinete do chanceler austríaco, Sebastian Kurz, emitiu uma nota dizendo que Viena está em negociações com o Fundo de Investimento Directo Russo para a aquisição de um milhão de doses da Sputnik V. “Não deve haver cegueira geopolítica em relação às vacinas”, disse Kurz, citado pelo Politico. “A única coisa que interessa é se a vacina é eficaz e segura, não a sua origem.”
Mas isto não é assim tão linear, porque para os países bálticos, por exemplo, é ofensiva a ideia de deixar entrar uma vacina russa, ainda que contra a covid-19, no espaço da União Europeia. A Ucrânia, que mantém um conflito com a Rússia no Leste do país, recusa de forma determinada receber a Sputnik V – enquanto os cidadãos do Leste pró-russo são imunizados com ela.
Desde o início – veja-se o nome, igual ao do primeiro satélite feito pelo homem, de fabrico russo – que a vacina Sputnik V (o “v” é de vacina ou de vitória) tem tanto de ciência como de propaganda do regime russo. Será impossível arrancar-lhe essa característica.