Manifestações no Reino Unido? Sim, mas com juízo
Com o nome de “Police, crime, sentencing and courts bill”, esta lei vem delegar na polícia o poder para decidir sobre as horas de começo e fim de manifestações, bem como o nível de ruído das mesmas. Caso os níveis de ruído ultrapassem o estipulado, a polícia pode intervir de modo a assegurar o bem-estar social.
Os tambores rufam agora que o Reino Unido se prepara para aprovar uma lei cujo intuito é o da ilegalização de toda e qualquer manifestação susceptível de incomodar o público em geral. Uso a palavra “incomodar” mas também posso usar a palavra “importunar” como traduções literais sempre que uma manifestação provoque “unease, alarm or distress”.
Com o nome de “Police, crime, sentencing and courts bill”, esta lei vem delegar na polícia o poder para decidir sobre as horas de começo e fim de manifestações, bem como o nível de ruído das mesmas. Caso os níveis de ruído ultrapassem o estipulado, a polícia pode intervir de modo a assegurar o bem-estar social.
A lei aplica-se desde protestos individuais até ao vedar da Parliament Square em manifestações cujo “cariz desordeiro”, de acordo com o Governo, impeça o bom termo dos trabalhos parlamentares a decorrer do lado de lá da rua. Mas não só: daqui em diante não será possível a ocupação de estradas e pontes ou meios mais radicais como o acorrentar de pessoas a grades ou portas, assim retirando a voz a quem pretende obstruir vias de acesso e espaços públicos.
De igual modo, a lei dá ao ministro da Administração Interna a última palavra na avaliação do impacto de uma manifestação e os respectivos poderes para a sua proibição caso assim entenda, deste modo sobrepondo-se à decisão da polícia. O não cumprir das regras e a correspondente desobediência civil serão sancionada com multas e/ou prisão até dez anos.
Pergunta, directa e simples: não está o direito à manifestação protegido a nível internacional como um dos três direitos essenciais, ergo, o direito à liberdade de expressão, o direito à reunião e o direito à associação pacífica? Para a Organização das Nações Unidas, o direito à “reunião” inclui desde manifestações a comícios, marchas e greves, sublinhando a obrigação dos Estados membros de não só promover mas também proteger todas e quaisquer reuniões pacíficas. A ratificação deste tratado pelos países pertencentes à ONU converte o mesmo em lei, cabendo a cada Estado o cumprir dessa lei. Quer isto dizer que legalmente temos o direito à livre expressão na rua.
Infelizmente, o Governo britânico não pensa do mesmo modo, propondo-se desta feita a alterar a legislação vigente de modo a cercear este direito fundamental num país, supostamente e até à data, tão livre como desenvolvido. Com uma maioria parlamentar ao seu dispor, é assim uma questão de tempo até que se delegue nas forças policiais o poder para decidir sobre os níveis de ruído de uma manifestação e o ponto a partir da qual quem protesta está a incomodar quem o rodeia.
Pergunta: desde quando nos manifestamos para não incomodar? Desde quando saímos à rua para que tudo fique na mesma? E que sentido tem querer gritar e protestar se não for para desassossegar, provocar, questionar a alterar o instituído? E o que dizer de todos os movimentos cívicos e os direitos adquiridos a nível racial, sexual, identitário, laboral se os mesmos tivessem decorrido com juizinho e em silêncio numa demonstração de sentimentos e atitudes diametralmente opostas a tudo quanto nos vai na alma quando saímos para a rua? Numa tomada de posição capaz de fazer corar um ditador, que possibilidade teremos de ser ouvidos se por lei será possível calar quem discorda, quem não aceita, quem não se resigna, quem não baixa aos braços?
O resultado está à vista depois da terceira noite de violentos protestos em Bristol com milhares de pessoas na rua, não só contra a nova lei, mas contra a polícia, provocando ferimentos em vários elementos das forças de segurança, ateando fogo a carrinhas da polícia, cercando a sede da polícia e lançando foguetes.
A exigência é simples: não nos tirem a voz. As sociedades existem como livres e democráticas porque se alicerçam neste princípio fundamental, nesta liberdade fundamental. Se nos tirarem a voz, deixamos de ser uma democracia onde todos podem falar livremente. E toda a gente sabe o que acontece quando deixamos de ser uma democracia.