Woody Allen fala sobre Dylan Farrow na CBS, que vota entrevista ao streaming e critica a própria entrevista
Sem acrescentar novidades sobre as acusações de abusos sexuais que assombram o cineasta, a entrevista de 2020 só agora foi publicada. Realizador vive momento mediático pouco favorável no tribunal da opinião pública norte-americana.
O realizador norte-americano Woody Allen voltou a negar ter abusado sexualmente da sua filha adoptiva Dylan Farrow, desta feita numa entrevista à CBS em que não acrescentou novos argumentos à sua versão da tensa história que abalou a sua carreira mas que produziu um efeito secundário particular: a entrevista, rara, foi directamente para streaming sem passar na antena do canal generalista e foi criticada na própria CBS. Allen considera-se “perfeitamente inocente”, a CBS quis dar-lhe a oportunidade de ser ouvido — duas semanas depois de a HBO ter exibido o último episódio da série Allen v. Farrow, em que o caso de Dylan é exposto.
Pela primeira vez em 28 anos, no Verão de 2020, Allen falou a um canal aberto dos EUA, numa conversa com o jornalista Lee Cowan. Sobre as alegações de Dylan Farrow, que remontam a Agosto de 1992 e geraram investigações policiais e anos de tinta nos jornais e cliques na internet, disse que não considera que a filha adoptiva esteja a mentir. “Acredito que ela pense [que é verdade]. Não acredito que ela esteja a inventar. Ela não está a mentir. Eu acredito que ela acredita nisso”, disse o realizador, na esteira da sua tese de que Mia Farrow, a mãe adoptiva de Dylan, a terá manipulado enquanto criança para acreditar que foi atacada sexualmente pelo realizador numa altura em que o casal se separava por Allen estar envolvido com outra das filhas adoptivas de Farrow, Soon-Yi Previn.
Dylan Farrow ainda não reagiu a esta entrevista, que foi disponibilizada no domingo na Paramount+, a plataforma de streaming do estúdio detentor da CBS. A filha adoptiva de Allen e Farrow tem estado activa nas redes sociais nestas últimas semanas em que Allen v. Farrow estreou os seus quatro episódios (com imagens inéditas e sem qualquer participação actual de Allen). O realizador recusou ser entrevistado para o documentário, cujos autores dizem ter dado mais do que meses de antecedência ao autor de Annie Hall para o fazer. Já repetiram o convite para uma entrevista a solo, mas foi à CBS que o realizador escolheu falar. A entrevista está porém a ser criticada por ambas as partes — pela equipa de Allen e pelos auscultados num outro programa de informação do canal.
Uma carreira acabada?
No domingo, a CBS transmitiu o seu programa habitual CBS Sunday Morning com uma peça dedicada à "cancel culture" — o movimento que propõe que o trabalho ou os indivíduos vistos como contrários à aceleração de processos de justiça social sejam “cancelados”. Allen, tal como Michael Jackson, por exemplo, era um dos visados do magazine e uma das suas participantes, a crítica cultural e académica especialista em feminismo Aruna D’Souza, aproveitou a oportunidade para criticar directamente a entrevista e o realizador. Note-se que a peça e a entrevista fazem parte do mesmo programa, o CBS Sunday Morning, mas a entrevista foi directamente para streaming e não posta no ar na antena que é vista por dezenas de milhões de americanos. “Se alguém está ali a ser entrevistado, é-lhe dada uma espécie de legitimidade só pelo facto de estar a ser entrevistado por um grande programa de informação”, lamentou a docente.
A CBS News não deu grandes detalhes sobre por que é que a entrevista só agora foi tornada pública, dizendo apenas que o “ciclo noticioso activo” de 2020, dominado pela covid-19 e pelas presidenciais, bem como pelos protestos em torno do movimento Black Lives Matter motivou o seu adiamento. Foi para a Paramount+ dado “o renovado interesse na controvérsia que rodeia o realizador”, disse a estação numa nota citada pela revista Hollywood Reporter.
O momento mediático não é favorável a Allen nesta guerra em que a justiça social se procura no tribunal da opinião pública. A revista Variety critica a entrevista por “passar ao lado do facto de a carreira cinematográfica de Allen estar efectivamente acabada nos EUA”, por exemplo. Já Allen considera-se prejudicado por ter sido relegado para o streaming, mas sobretudo por ver a sua entrevista como parte de um pacote de programação que a agrega à entrevista dada por Dylan Farrow em 2018 a Gayle King e à peça sobre a “cancel culture” em que a entrevista de Lee Cowan é criticada. Para a CBS News, o pacote permite abordar o tema “com a profundidade que a história exige”.
Para a porta-voz de Woody Allen, a sua irmã Letty Aronson (que é também produtora), o facto de a entrevista ter sido emparelhada com as outras duas peças é “completamente desonesto e escandaloso”. Num e-mail enviado à revista Variety, Aronson acrescenta que quando a entrevista foi gravada “nada foi dito sobre fazer um programa que avançasse e recuasse nesta absurda controvérsia”: “Foi nessa base que concordámos fazê-la.” A produtora diz que “só recentemente” souberam que se trataria de um pacote e que iria ser colocada directamente em streaming.
Forte apelo
Woody Allen nega desde 1992 ter abusado sexualmente de Dylan Farrow, que à época foi ouvida por peritos e participou em duas investigações policiais distintas sobre o caso. O realizador nunca foi acusado formalmente de qualquer crime e na série Allen v. Farrow, que já foi criticada pela sua selecção de factos, o procurador do Connecticut responsável pelo caso diz que só não avançou com uma acusação a Allen por receio dos danos que uma ida a tribunal pudesse causar à criança. Outros dados sobre incongruências no relato de Dylan Farrow ou de outros dramas da família foram ignorados.
Ocasionalmente, Dylan e Mia Farrow continuaram a falar no caso nos media — na Vanity Fair, no New York Times — e mais recentemente na CBS, na esteira do movimento #MeToo em 2018, a jovem fez um forte apelo. “O que não compreendo é como é que esta história doida de eu ter sido alvo de uma lavagem cerebral e treinada [para fabricar uma história de abuso de menores] é mais credível do que o que estou a dizer sobre ter sido atacada sexualmente pelo meu pai”, disse a Gayle King. Vários actores e actrizes vieram a terreiro apoiá-la e dizer, como Natalie Portman: "Acredito em ti, Dylan".
Lee Cowan pergunta a Allen sobre os actores que desde então lamentam ter trabalhado com ele e garantem que nunca mais voltar a fazê-lo. “Acho que são insensatos. São bem-intencionados, mas insensatos. Tudo o que estão a fazer é perseguir uma pessoa perfeitamente inocente e a possibilitar esta mentira”, diz o realizador.