As camisolas poveiras são uma expressão cultural tradicional ainda à espera de certificação
Não seria fácil defender em tribunal um produto não certificado que, pela sua história e importância comunitária merece uma classificação como património imaterial, defende advogada especialistas em conflitos relacionados com propriedade intelectual.
As camisolas poveiras são produzidas há mais de um século entre a comunidade piscatória da Póvoa de Varzim, mas nem esta peça de vestuário, nem o saber-fazer que lhe está associado estão certificados. A Junta de Freguesia da Póvoa de Varzim está desde o ano passado a desenvolver a certificação desta peça junto do CEARTE - Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Para o Património, mas o processo não está ainda concluído. O museu municipal prepara a edição de um livro, que ainda não saiu por causa da pandemia, e que deverá, agora, incluir referências ao conflito com a estilista norte-americana Tory Burch, que as tentou vender sem referência à origem.
Quando o Governo português, através do Ministério da Cultura, anunciou que iria solicitar a identificação das vias judiciais e extrajudiciais ao dispor do Estado português para defender a camisola poveira enquanto património cultural português, levantou-se imediatamente a questão da dificuldade de lutar contra a apropriação de algo que ainda não está certificado como uma produção artesanal tradicional, e cuja componente material (os desenhos, o ponto utilizado), não tendo um autor conhecido, dificilmente poderia ser defendido pelo lado da propriedade intelectual.
Na verdade, tendo coincidido com a ameaça do Estado português, a retirada da peça da sua loja online por parte de Burch poderá estar mais depressa relacionada com o impacto internacional que o caso passou a merecer na sexta-feira, depois de ter chegado ao Instagram do Diet Prada. Criado há cinco anos, o projecto dos nova-iorquinos Tony Liu e Lindsey Schuyler expõe situações de plágio na indústria da moda, para além de outros problemas graves, como a exploração de modelos ou abusos sexuais. Dali, a história já tinha, na sexta-feira, saltado para o The Independent, entre outros, mas já com a tónica no pedido de desculpas da estilista. Que apenas assumiu um erro de má atribuição da inspiração para o produto.
A indústria da moda deve respeitar estas tradições
Três dias depois de o caso ter sido dado a conhecer, ninguém duvida, em Portugal, que a peça era uma simples cópia de uma expressão cultural tradicional (ECT). O caso chamou a atenção de Vera Albino, coordenadora jurídica da Inventa International, sociedade especializada em conflitos relacionados com propriedade intelectual, que acompanha com atenção a forma como alguns membros da indústria da Alta-costura se apropriam, por vezes, destas ECT, e para quem Tory Burch falhou alguns dos quatro princípios propostos, para a indústria da moda, por uma das mais reputadas juristas nesta área, Brigitte Vézina, e seguidas pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual.
Segundo esses princípios, os criadores devem “compreender e respeitar as culturas indígenas, ou locais”, podem “reinterpretar e transformar essas expressões de maneira respeitosa”, “reconhecendo e publicitando a titularidade dessas expressões”. Por último, devem, sempre que possível, dialogar com as comunidades de origem dessas ECT, e colaborar com elas no desenvolvimento desse produto”, explica a jurista portuguesa. Que defende a classificação destas manifestações da cultura popular como património imaterial português, passo que permitiria, por exemplo, o seu eventual reconhecimento pela UNESCO. Outas formas de certificação, como a Denominação de Origem Protegida (DOP), não impedem que o mesmo produto seja replicado noutro lado. Apenas não pode usar a denominação, acrescenta.
Portugal tem, desde 2019, uma estratégia e um programa para a valorização do saber fazer português, mas ainda está para ser criada a associação encarregada de levar por diante esta iniciativa, voltada, precisamente, para a valorização do artesanato. Quando denunciou o caso com Tory Burch ao PÚBLICO, o presidente da Junta da Póvoa de Varzim, que tem coordenado o processo de certificação das camisolas poveiras, considerou excessivo que “seja preciso pagar cerca de dez mil euros”, acrescido de um valor anual “de três mil euros”, para registar e manter a certificação deste produto tradicional. “A nossa junta até consegue pagar. Para outras entidades, é demasiado. Se isto é um património que estamos a tentar manter vivo, o processo até devia ser subsidiado”, insistia, na quarta-feira, o autarca.