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O amor à camisola como razão de Estado

Quando uma estilista abusadora consegue ocupar umas horas da agenda de uma ministra que tutela um sector na agonia, não é o amor à camisola que se receia. É o risco de o país se tornar uma caricatura.

Os jornalistas do serviço em português da Teledifusão de Macau foram avisados para cercearem a sua liberdade de expressão e se absterem de criticar o governo da China e de Macau. Seis desses jornalistas demitiram-se na sequência dessa clara violação da declaração conjunta assinada em 1987 entre Portugal e a China que consagra, entre outros princípios, os “direitos e liberdades”, entre os quais se inclui o da liberdade de imprensa. O que num país cioso dos seus direitos e defensor dos acordos que celebrou deveria motivar um coro de indignação ficou resumido numa declaração lacónica, embora importante, do ministro Augusto Santos Silva: “Portugal espera e conta que a China cumpra a lei básica de Macau.” Ponto.

Por estes dias, uma notícia do PÚBLICO dava conta de que uma estilista dos Estados Unidos tinha à venda uma camisola poveira sem designar a sua origem. De imediato a portugalidade profunda tratou de manifestar a sua indignação, como se em causa estivesse um saque patrimonial de consequências dramáticas e irreversíveis para o futuro da nação. Num gesto algures entre a bravura da padeira de Aljubarrota e a determinação de Maria da Fonte, a ministra da Cultura “tomou a iniciativa de solicitar a identificação das vias judiciais e extrajudiciais ao dispor do Estado português para defender a camisola poveira enquanto património cultural português”. Uma camisola pirateada por uma estilista que já pediu desculpa agrediu mais o orgulho e o interesse nacional do que a violação de um tratado.

O confronto entre a brandura cautelosa de Santos Silva e a determinação enérgica da sua colega da Cultura diz muito sobre o peso que as emoções das redes têm nas opções da política. Num caso grave e violador de um acordo depositado na ONU, vê-se uma prudência receosa; num caso menor instigado pela apropriação indevida de uma estilista, lança-se uma ofensiva patriótica. Nada contra a importância da camisola. Nada contra a indignação, o protesto ou a litigância judicial da autarquia poveira. Mas, quando um governo transforma uma camisola num assunto de Estado, o episódio sai do foro dos diplomatas e entra na esfera dos cartoonistas.

O amor à camisola é, bem se sabe, algo que convoca as raízes mais fundas do patriotismo. Vale mais um golo do Ronaldo do que a Feedzai ser unicórnio. Hasteia-se mais a bandeira num campeonato da Europa do que no 10 de Junho. Mas há limites. Quando uma estilista abusadora consegue ocupar umas horas da agenda de uma ministra que tutela um sector na agonia, não é o amor à camisola que se receia. É o risco de o país se tornar uma caricatura com traços de provincianismo e de ridículo.

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