A Última Ceia de Bertílio Gomes é feita de legumes e leguminosas milenares
O chef desenhou um menu onde figuram ingredientes que podiam ter passado pela mesa de Jesus e dos apóstolos, naquela que terá sido a última refeição conjunta. Estreia na sexta-feira, dia 26, no canal História, que há quase uma década convida cozinheiros a reimaginar a Última Ceia.
O convite não é para ir à Taberna Albricoque, em Lisboa, do chef Bertílio Gomes, mas é levar a Taberna Albricoque até nossa casa. Ao contrário dos anos anteriores e por culpa da pandemia, o canal História não reuniu os jornalistas a uma mesa de almoço, mas sim em frente ao ecrã, numa reunião por Zoom. Antes disso, a comida chegou bem acondicionada num saco de entregas e em embalagens ecológicas.
Há nove anos que o canal História promove o trabalho dos cozinheiros portugueses, desafiando-os para imaginarem um menu a partir de “A Última Ceia”, um programa que é apresentado naquele canal, ao longo da Semana Santa. A estreia acontece dia 26, às 22h10, com repetições até à Páscoa, dia 4 de Abril. Este ano, a escolha recaiu sobre Bertílio Gomes que desenhou uma carta onde figuram ingredientes que podiam ter passado pela mesa de Jesus e dos apóstolos, naquela que foi a última refeição conjunta, antes de Cristo ser entregue às autoridades para ser julgado por blasfémia e condenado à morte de cruz.
Certo, certo foi o pão e o vinho que chegaram até aos dias de hoje e são consagrados na eucaristia, diz o chef, confessando que é católico não praticante e que foi escuteiro até enveredar pela cozinha, uma profissão que não deixa espaço para hobbies que requeiram demasiado tempo livre. Bertílio Gomes, cuja cozinha é predominantemente vegetariana, privilegia a dieta mediterrânica e bebe alguma da sua inspiração no Algarve. Por isso, escolheu alimentos como o figo, o grão ou as lentilhas, típicas da época de Jesus e da cozinha local.
De pé, frente para a câmara e junto a uma mesa onde estão quase todos os pratos do menu, Bertílio Gomes vai explicando como chegou a cada uma das propostas. A ideia, começa por dizer, é comer à mão, como se comeria naquele tempo. O desafio foi não perdes as bases históricas. “Penso que a Última Ceia foi principalmente um momento de encontro e de partilha onde o que se comeu foi secundário. Pensa-se que é muito provável que Jesus Cristo e os restantes apóstolos tivessem uma alimentação mais à base de elementos vegetais, sendo esta celebração da Semana Santa, assinalada pela abstinência de carne, por ser considerada uma luxúria e um alimento impuro para o corpo”, refere. Por isso, o menu é feito à base de vegetais.
Uma tendência que está de volta, numa altura em que cada vez mais pessoas estão a mudar a sua dieta e a dar prioridade a alimentos como os legumes e as leguminosas. Assim, as cinco propostas — que podem ser acompanhadas por um vinho de talha — começam com um Tártaro de beterraba com grão e ervas amargas. O chef evoca a saída de Moisés e dos hebreus do Egipto, a sua travessia do deserto e as ervas amargas que foram ingerindo para sobreviver. Na sua proposta estas são agrião, chicória e dente de leão. O grão também fazia parte da dieta, era feito pão de grão que à semelhança do pão ázimo — aqui a sugestão é que o pão ázimo acompanhe toda a refeição — não era fermentado.
Segue-se um prato de Lentilhas com queijo de cabra, tomate confit e couve kale. Também se fala de lentilhas na Bíblia, refere o chef. Já a cabra era um dos animais que o povo hebreu podia comer, era um povo de pastores, Jesus usa-os em algumas das suas parábolas.
Depois, é tempo de provar Favas e trigo em pétalas de cebola assada. Bertílio Gomes volta a citar a Bíblia para justificar a escolha do trigo e das favas, alimentos que também fazem parte da gastronomia portuguesa, sublinha.
A quarto sugestão é uma Morcela Vegetal, um prato que faz parte do menu do restaurante e que consiste numa salada de cenouras assadas, temperada com cominhos — uma especiaria muito utilizada no Médio Oriente — e azeitonas, também ela um ingrediente bíblico. Aliás, o azeite faz parte da narrativa e das parábolas de Jesus.
Por fim, há um Tártaro de carapau com figos secos e amêndoas. “O peixe é um dos símbolos do catolicismo, já que alguns dos apóstolos eram pescadores. Este carapau é curado em salmoura, uma técnica de conservação de alimentos já aplicada naquela época”, refere. Quanto à figueira é uma árvore comum quer na Palestina, quer em Portugal, sobretudo no sul. “Existe uma grande afinidade da minha cozinha com este produto, visto que tenho muitas influências do Algarve”, justifica.
Depois de mostrados todos os pratos, a mesa é limpa e Bertílio Gomes prepara um Sorvete de vinho tinto com especiarias e frutos vermelhos com rabanada de folar da Páscoa. Pegando num jarro de vinho com especiarias, o chef mistura-o com azoto que rapidamente transforma o vinho — símbolo da eucaristia, juntamente com o pão — em sorvete.
“Estou completamente convicta de que o chef Bertílio Gomes trouxe a este projecto uma abordagem muito interessante, original e surpreendente, com uma confecção imaculada, cheia de sabores, combinando a tradição e a história, sem desrespeitar a sua ligação à terra e ao sul de Portugal, mas também assente na actualidade”, declara Carolina Godayol, directora-geral do The History Channel Ibéria, a partir de Espanha, agradecendo ao cozinheiro a sua participação.
Bertílio Gomes junta-se assim à lista de chefs que já participaram em edições anteriores. A saber: Miguel Laffan e João Alves, em 2014; Kiko Martins, Pedro Almeida, Miguel de Castro e Silva, em 2015; Henrique Sá Pessoa, em 2016; Vítor Sobral, em 2017; Diogo Noronha, em 2018; Rui Paula, em 2019; e Nuno Bergonse, o ano passado.
O PÚBLICO experimentou o menu de A Última Ceia a convite do canal História.