Qual o impacto da covid-19 nas doenças raras?
A pandemia de covid-19 exacerbou os desafios que as pessoas com doenças raras enfrentam no seu quotidiano. Conheça os principais efeitos.
Nove em cada 10 pessoas com doença rara sofreram interrupções no tratamento da sua doença rara. O dado é de um estudo da responsabilidade da Eurordis, aliança de organizações de pacientes com doenças raras a nível europeu. Entre Abril e Maio de 2020 foi realizado um inquérito que contou com mais de 8500 respondentes, entre pessoas com doença rara e seus familiares, num total de 89 países. Outros dados revelaram que perto de 7 em 10 doentes viram consultas canceladas, fosse com os médicos de clínica geral ou com os especialistas que os acompanham; mais de 5 em 10 dos que precisavam de cirurgia ou transplante viram estas intervenções canceladas ou adiadas e quase 6 em 10 viram interrompido o acompanhamento psiquiátrico.
Já em Portugal foi realizado, entre Março e Outubro de 2020, um estudo coordenado pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), em parceria com a Takeda, que dá pistas sobre o impacto da pandemia covid-19 na actividade hospitalar do Serviço Nacional de Saúde (SNS), focando o caso das Doenças Lisossomais de Sobrecarga (DLS). Foram inquiridos os seis centros de referência a nível nacional para estas doenças raras e foram obtidas respostas de cinco deles. Para compreender o impacto da covid-19 na gestão de doenças raras, falámos com Anabela Oliveira, presidente da Comissão Coordenadora do Tratamento das Doenças Lisossomais de Sobrecarga do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge.
Tratamento hospitalar: lugar à reconfiguração
“O que verificámos é que salvo raras excepções, os doentes mantiveram os seus tratamentos em hospital de dia e houve uma reconfiguração dos hospitais no sentido de manter estas zonas COVID- free”, começa por comentar Anabela Oliveira. A presidente da Comissão Coordenadora do Tratamento das Doenças Lisossomais de Sobrecarga do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge reconhece, no entanto, que “houve alguns doentes que se recusaram a vir ao hospital durante esse período – não tanto na área pediátrica, mas nos adultos – pelo menos durante o mês de Março, e não fizeram o tratamento (duas administrações). Foi feita uma avaliação individual com os médicos assistentes do risco-beneficio. Mas, de uma forma geral, não houve suspensão de terapêutica.”
Já no caso das pessoas com doença de Gaucher, houve lugar a uma reconfiguração da terapêutica: “Foi preciso reconfigurar a administração da terapêutica, ou seja, em vez de fazerem de 15 em 15 dias, iam uma vez por mês. Mesmo em relação à idade pediátrica, foi possível fazer de 15 em 15 dias em vez de semanalmente. Houve um ajuste e a própria Comissão criou um documento a dar algumas recomendações para este período pandémico.”
Terapêutica domiciliária: novidade aguardada
A grande novidade no que toca às doenças raras aconteceu no âmbito da DLS. Denominado Projecto Guimarães, inaugura a modalidade de tratamento domiciliário através de um projecto-piloto no Hospital Senhora da Oliveira-Guimarães, o centro de referência nacional e europeu para as DLS. Ainda assim, este manteve-se um tema de discussão, no sentido de estudar a implementação a nível nacional.
“A terapêutica domiciliária é uma necessidade que já sentíamos há alguns anos, mas que a pandemia trouxe à nossa mente e que foi discutida ao longo de todo o ano”, comenta Anabela Oliveira, segundo a qual “já é realizada em muitos países a doentes com DLS, de acordo com critérios previamente definidos” e “é melhor em termos de compliance e qualidade de vida dos doentes”. O objectivo, assegura, é tornar esta modalidade disponível para todos os centros de referência a nível nacional, assegurando a equidade de tratamento.
Sobre a brevidade da sua aplicação, assegura que não é por falta de pressão por parte da comissão. “Claro que os doentes têm de ser devidamente seleccionados, têm de ter feitos seis meses de terapêutica prévia em hospital de dia. Mas sem dúvida que é um objectivo da comissão, já era antes da pandemia, mas agora queria deixar esta possibilidade legislada, que houvesse uma norma, uma orientação para todos os centros. É algo que espero que nos próximos tempos fique disponível em todos os centros de referência.”
Consultas remotas
No estudo da Eurordis, muitos pacientes ou cuidadores declararam que as consultas remotas deviam ser parte dos seus cuidados de rotina, destacando a possibilidade de evitar deslocações, reduzindo custos, tempo e desgaste; também a possibilidade de comunicarem por escrito, permitindo uma comunicação mais precisa; e a possibilidade de complementarem a consulta com a parte administrativa a ser tratada via email.
Em Portugal, o aumento das teleconsultas foi também uma das medidas que permitiu compensar e manter o acompanhamento regular destes doentes. Esta foi uma das tendências observadas e comentadas pelo painel de especialistas que participou no webinar “Doenças Raras em tempo de pandemia: impacto e desafios na sua gestão”, realizado pelo Público no final de Fevereiro. “A telemedicina foi uma ferramenta muito útil, mas é preciso cuidado, nada substitui uma consulta médica olho no olho, uma fase de medicina personalizada que se pretende voltar a atingir”, destacou Luís Brito Avô, coordenador do Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa da Medicina Interna.
Já para Olga Azevedo, médica cardiologista e coordenadora do Centro de Referência de Doenças Lisossomais de Sobrecarga do Hospital Senhora da Oliveira – Guimarães, a videoconsulta inaugura um conjunto de possibilidades muito úteis para os doentes: “Podemos ter o especialista no centro de referência, o médico no centro de saúde e o doente na sua casa; ou então o médico assistente que o segue no centro de proximidade e o doente em sua casa, nem sequer precisa de se deslocar caso não seja necessário. Esta ferramenta vai ajudar a trazer os cuidados para mais perto do doente, respondendo melhor às suas necessidades”.
Balanço positivo
Outra novidade introduzida durante a pandemia foram os programas de entrega de medicamentos de uso exclusivo hospitalar em farmácia comunitária, “o que permitiu que alguns doentes que habitualmente iam à farmácia hospitalar levantar os seus medicamentos pudessem receber estes medicamentos em maior proximidade”, considerou Olga Azevedo no mesmo fórum.
De acordo com o estudo da APAH, entre Março e Outubro de 2020 registou-se um aumento de 3% nas primeiras consultas, mas uma quebra significativa nas consultas subsequentes (-18%). Dados que Anabela Oliveira relativiza: “Muitas das consultas se calhar passaram a não ser presenciais”. Já para Olga Azevedo, houve um atraso na referenciação de doentes: “Houve muitas consultas desmarcadas nos centros de saúde, muitos destes doentes não chegam aos hospitais. Ao haver este atraso na referenciação, vai-se reflectir num atraso no diagnóstico”.
Nos hospitais de dia registou-se uma quebra de 6% no número de sessões realizadas, um dado que Anabela Oliveira remete para a reconfiguração dos tratamentos: “A Doença de Gaucher é uma das DLS com maior prevalência e as sessões foram reconfiguradas”, salienta, acrescentando: “Não faço propriamente um balanço muito negativo em termos de prestação de cuidados a estes doentes. Tivemos vários doentes que iniciaram terapêutica, que foram pela primeira vez propostos para início de terapêutica TSE ou outras, ou seja, continuou a haver doentes a serem diagnosticados e a iniciarem terapêuticas”, conclui.