O fim da pandemia é possível sem a imunidade de grupo?
Entre o contributo da vacina e o aumento da população infectada estava a meta da imunidade do grupo. Porém, outros factores entraram na equação. As variantes do vírus, as dúvidas sobre a possibilidade de as pessoas vacinadas conseguirem transmitir o vírus e os diferentes ritmos das campanhas de vacinação são algumas das pedras no caminho para o controlo da pandemia.
Com a pandemia da covid-19 a avançar em passos (ainda) largos no seu segundo ano de acção destrutiva no planeta, os cientistas preparam o mundo para a possibilidade de termos de aprender a viver com este vírus. Esse cenário já foi apresentado há muitos meses, mas o entusiasmo com a chegada da vacina terá colocado muita gente à espera de um fim disto tudo ao virar da esquina. A meta da imunidade de grupo que a maior parte dos cientistas coloca numa proporção entre os 60 e 70% da população imune pode ser, afinal, uma miragem. Um artigo publicado hoje na revista Nature reforça esta ideia da possibilidade de um futuro mais tranquilo, mas sem imunidade de grupo.
Apesar da espantosa ajuda da vacina, começa a ficar claro que será muito pouco provável conseguir a imunidade de grupo apenas com esta arma. Sobre o contributo da outra face da moeda da imunidade, com o aumento da proporção da população infectada e com imunidade por causa disso também ainda existem muitas dúvidas sobre a força e duração dos anticorpos. Para piorar a situação, a capacidade que este vírus já mostrou em mudar rapidamente para infectar mais gente pode também vir a criar problemas se arranjar uma forma de resistir às vacinas que existem agora.
Sem imunidade estamos perdidos? Não. Mesmo que não consigam mais do que isso, as vacinas conseguem proteger a população de desenvolver formas graves da doença e evitam as mortes. A doença pode não desaparecer, mas é possível que perca força. Por outro lado, os cientistas também continuam a investir na procura de tratamentos eficazes para tratar esta infecção. Há outros vírus, como o VIH ou a hepatite C, que sem vacina foram, de alguma forma, dominados (no caso da hepatite C há mesmo uma cura) com tratamentos. Assim, mesmo sem imunidade de grupo, ainda é possível alcançar alguma tranquilidade, mas talvez o mais sensato seja estar preparado para um futuro com covid. Melhor, mas com covid. Aqui estão algumas das possíveis respostas às perguntas mais comuns por esta altura.
A vacinação não nos ia trazer a imunidade de grupo?
A vacina era e continua a ser um poderoso aliado na resposta a esta pandemia, no entanto, ainda há muitas dúvidas sobre o possível bloqueio da transmissão do vírus com a imunização. Os dados dos cientistas que acompanham o papel das pessoas já vacinadas na transmissão do vírus ainda são inconclusivos. As vacinas já mostram um evidente benefício na redução dos sintomas da infecção, prevenindo os casos mais graves da doença e, desta forma, conseguindo um notável efeito na redução das mortes associadas à covid-19.
Se a vacina impedisse a transmissão, a imunidade seria possível?
Sim. A maioria das estimativas dos cientistas considera que o efeito de imunidade de grupo seria atingido se entre 60 e 70% da população ganhasse imunidade, seja pela vacinação ou pelo contacto com o vírus tendo sido já infectada e ganhado anticorpos. A capacidade de a vacina bloquear a transmissão do vírus não precisa sequer de ser de 100% para nos aproximarmos do limiar de 60/70% da população imune.
Quem já esteve infectado está protegido?
O tempo passa e há, por um lado, cada vez mais gente vacinada e, por outro lado, com a infecção ainda a alastrar há também cada vez mais gente que foi infectada e que terá anticorpos que muito provavelmente conferem uma protecção. No entanto, alguns estudos e alguns fenómenos registados em alguns países, como no Brasil em Manaus, já mostraram que é possível o aparecimento de surtos da infecção com novas variantes do vírus entre estas pessoas que já tinham sido infectadas antes.
Até quando pode durar a imunidade após a infecção?
Não se sabe. Já se sabe que ter sido infectado confere alguma protecção através dos anticorpos produzidos para responder a essa infecção. No entanto, essa protecção pode variar no tempo e entre pessoas. O que para já é seguro dizer é que essa protecção surge, mas também que, seja mais ou menos robusta e duradoura, não dura para sempre.
Qual será o principal obstáculo à imunidade de grupo?
Além da hipótese ainda não totalmente confirmada sobre a possibilidade de as pessoas vacinadas poderem ainda assim transmitir o vírus, as novas variantes que têm surgido em vários lugares do mundo também são um importante entrave ao controlo da pandemia. Com as inevitáveis e naturais mutações, o vírus terá adquirido já uma maior capacidade de transmissão da infecção. A possibilidade de que possa surgir uma variante que além de altamente contagiosa seja resistente às vacinas desenvolvidas não pode ser excluída, embora os especialistas continuem a afirmar que será necessária uma alteração mais radical no vírus do que as que têm sido observadas até agora. Quanto mais tempo for necessário para conter a transmissão do vírus, maior é a probabilidade destas variantes surjam e se propaguem.
A própria vacina pode ser um entrave?
Por estranho que pareça, a resposta é sim, ainda que esse sim não esteja directamente relacionado com a eficácia da vacina mas antes com o comportamento das pessoas. O sentimento de segurança que pode surgir na população à medida que cresce a cobertura da vacina pode fazer com que as pessoas aumentem a interacção com outras. Por outro lado, os próprios países podem decidir levantar algumas restrições com o aumento da percentagem da população vacinada. Em ambos os casos, estes comportamentos podem ser demasiado prematuros e comprometer o controlo da pandemia. Manter todos os cuidados de higiene, uso de máscara e distanciamento continua a ser decisivo.
O que poderia facilitar o alcance da desejada imunidade de grupo?
Uma grande parte dos cientistas defende que uma campanha global de vacinação perfeitamente coordenada a acontecer ao mesmo ritmo e em todo o lado seria uma forma de conseguir dominar este vírus. No entanto, os mesmos cientistas admitem que essa incrível sintonia a nível mundial é bastante improvável ou mesmo impossível. Não só há grandes diferenças no ritmo das campanhas de vacinação entre países como também existem disparidades entre regiões dentro do mesmo país.
O que já sabemos sobre os bons exemplos de vacinação?
A estratégia de Israel tem sido uma das mais comentadas por causa dos altos níveis de vacinação que já foram conseguidos naquele país. Actualmente, à volta de 50% da população já está vacinada. No entanto, apesar de uma nítida redução das mortes registadas no país, o número de casos ainda continua relativamente alto, o que parece indicar que, apesar de vacinadas, as pessoas ficam protegidas de desenvolver sintomas graves da doença mas podem ser infectadas e transmitir o vírus. Os vizinhos de Israel, Líbano, Síria, Jordânia e Egipto, ainda não vacinaram 1% das suas populações. Esta disparidade entre países próximos aliada à fácil circulação e mobilidade de pessoas também pode prejudicar o controlo da pandemia.
Qual será o papel dos mais jovens?
A vacinação dos grupos etários das crianças, adolescentes e adultos jovens saudáveis não é uma prioridade. Aliás, os ensaios clínicos que estão a testar o efeito da vacina (a sua segurança e eficácia) nos mais jovens começaram há relativamente pouco tempo e ainda estão em curso. Porém, podem ter um papel importante para a meta da imunidade de grupo, uma vez que uma eventual exclusão destes grupos na campanha de vacinação poderia fazer com que fosse necessário vacinar praticamente 100% das pessoas acima dos 18 anos para conseguir os limites (70%) que estão definidos para a imunidade de grupo.