Um verdadeiro inferno

Num ambiente caótico e em que a falta de preparação de todos os concorrentes os lança para o desafio como baratas tontas, o que parece chocar o chef Ljubomir é que a cozinha das mulheres esteja mais suja do que a dos homens porque elas, enquanto mulheres, “devem dar o exemplo”.

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Ljubomir Stanisic Nuno Ferreira Santos

Estreou no domingo a mais recente aposta da SIC, o Hell’s Kitchen com o chef Ljubomir Stanisic. O programa é um concurso de chefs, alguns amadores, outros profissionais, numa cozinha simulada em que ganha quem, aparentemente, conseguir sobreviver a um ambiente de trabalho absolutamente tóxico.

É sabido que o ambiente em cozinhas de restaurantes de renome é duro, um verdadeiro trabalho de endurance reservado apenas aos mais resilientes. Anthony Bourdain retratou isso de forma muito vívida no seu best-seller Cozinha confidencial, mas estes formatos televisivos levam esta ideia ao extremo. Uma particularidade que vem do formato original com Gordon Ramsay, criador do programa: o chef que lidera a cozinha é extremamente agressivo com os concorrentes, transformando um ambiente de trabalho tóxico em entretenimento e um possível burnout em fraqueza. Esta premissa imita e contamina a vida real em que tendemos a acreditar que quem não aguenta é fraco, quem deseja ter tempo livre não é profissional e quem quer deixar o trabalho no trabalho é pouco ambicioso. É a vitória e a glorificação da agressividade.

Este tipo de ambiente parece ser particularmente desgastante para as mulheres quando o simples facto de ser mulheres lhes impõe outras exigências e condicionantes.

Num ambiente caótico e em que a falta de preparação de todos os concorrentes os lança para o desafio como baratas tontas, o que parece chocar o chef Ljubomir é que a cozinha das mulheres esteja mais suja do que a dos homens porque elas, enquanto mulheres, “devem dar o exemplo”. A ideia de que as mulheres têm de ser mais limpas e arrumadas do que os homens é o mesmo que dizer que nasceram com o “gene da limpeza” ou que os homens nasceram com o “gene da desorganização”, quando, na verdade, em qualquer cozinha profissional, seja homem ou mulher, a primeira coisa que se aprende é a manter a bancada limpa, desocupada e organizada por forma a facilitar o trabalho. Não tem a ver com género e a única natureza em questão é a natureza do trabalho.

A simples ideia de que as duas equipas se dividam entre homens e mulheres, numa premissa que pensávamos já há muito ultrapassada, mostra que interessa pouco o equilíbrio das capacidades dos concorrentes, mas sim o potencial drama a espremer.

Quando as equipas vão para as respectivas cozinhas, a narrativa fica clara: as mulheres não se entendem a trabalhar juntas e só há conflitos entre elas. O insucesso das suas missões é atribuído ao facto de serem só mulheres na equipa e não ao facto de serem inexperientes e terem sido “lançadas aos lobos”; de resto, tal como os homens. É uma das concorrentes que acaba por afirmar que as mulheres disputam muito entre si, perpetuando a falsa ideia de que é impossível para as mulheres trabalharem juntas. Uma ideia que parece ainda muito presente, que continua a ser largamente disseminada também por mulheres e que condiciona à priori. Na cozinha dos homens, igualmente desorganizada, não parece haver um problema de “disputa”, só desorganização, mas isso já não tem um nome, nem género.

O programa mostra-se um espelho para a realidade: um ambiente de trabalho tóxico é penalizador para todos, mas quando o género é o prato principal e não se consegue ver o trabalhador para além disso, significa que continuamos a anos-luz de uma verdadeira igualdade.

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