A desnutrição grave está a aumentar nas crianças do Iémen
Apesar de esta realidade aparecer regularmente nas notícias, assistimos a muito poucas mudanças no terreno. O mundo está ocupado com outras prioridades, mas é extremamente difícil acreditar que governos e agências e organizações humanitárias não consigam, em pleno século XXI, fazer mais pelas crianças em Abs.
Hamdi não fez ainda dois anos, mas é já a segunda vez que é paciente no Hospital da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Abs, no Norte do Iémen. Da primeira vez tinha cinco meses. Agora, apenas um ano depois, sofre de desnutrição grave e pneumonia. Tem as pálpebras inchadas, uma tosse constante e é-lhe difícil respirar. A família de Hamdi vive num país que está em guerra há seis anos e ele conhece apenas a guerra em toda a sua vida.
O pequeno Hamdi é uma das mais de cem crianças que a MSF tratou no Centro de Internamento de Terapêutica Nutricional em Abs desde o início de 2021. A maioria tem menos de cinco anos e todas sofrem de desnutrição grave. Vemos sempre no hospital um pico nos casos nesta altura do ano, mas por estes dias a situação está ainda mais grave: os casos aumentaram 41% em relação ao mesmo período de seis meses no ano anterior. É doloroso ver estas crianças admitidas na ala nutricional, com 50 camas, nesta cidade remota do Iémen.
São muitas as razões pelas quais estamos a ver crianças desnutridas em Abs, mas a maior parte delas estão relacionadas com o brutal conflito, já com seis anos, que tem assolado o Iémen desde 2015. A guerra dizimou a economia e destruiu as formas de subsistência ao ponto de as pessoas já não conseguirem comprar comida para alimentar as famílias nem combustível para se deslocarem em busca de trabalho ou para obter cuidados médicos. Muitos profissionais do sector público – incluindo profissionais médicos – não são pagos há anos. Os preços estão constantemente a subir: sem ajuda humanitária, muitas famílias não conseguiriam comida nenhuma.
A vasta maioria das pessoas no Iémen depende de ajuda humanitária para sobreviver, mas, apesar de esta necessidade ser clara, é um desafio permanente para as organizações humanitárias conseguirem chegar às populações mais vulneráveis. A resposta humanitária no Iémen carece de continuidade, é insuficiente e subfinanciada.
A MSF trabalha no distrito de Abs há cinco anos. Sabemos que providenciar programas de apoio nutricional mais consistentes e duradouros e melhorar o acesso a água potável, tanto nos campos de pessoas deslocadas como nas comunidades anfitriãs, pode reduzir o número de crianças gravemente desnutridas a chegarem ao hospital. Mas, em vez disso, o número de pacientes que tratamos supera frequentemente a capacidade da ala de nutrição terapêutica no hospital.
A desnutrição expõe as crianças a uma série de doenças secundárias, que podem ser fatais se não forem tratadas. Diarreias, sarampo e infecções respiratórias são doenças comuns da infância para muitas crianças no mundo inteiro, mas para crianças que já estão enfraquecidas e às quais faltam nutrientes essenciais – e onde não há acesso atempado a cuidados de saúde – essas doenças podem ter consequências que põem a vida em risco. Muitas das complicações relacionadas com a desnutrição que tratamos podem ser evitadas com a prestação de serviços básicos ao nível dos cuidados primários.
Sabemos, da experiência de tratamento dos milhares de pacientes que assistimos todos os anos no Hospital de Abs, que a história do pequeno Hamdi é, infelizmente, uma história comum. As crianças que tratamos estão habituadas a ouvir as suas famílias preocuparem-se infinitamente sobre a situação económica: os pais ausentam-se dias a fio à procura de trabalho, de combustível ou de comida, as mães fazem tudo o que podem para alimentarem as suas famílias e, mesmo com todos estes esforços, as crianças continuam a passar fome.
Apesar de esta realidade aparecer regularmente nas notícias, assistimos a muito poucas mudanças no terreno. O mundo está ocupado com muitas outras prioridades, mas é extremamente difícil acreditar que governos e agências e organizações humanitárias não consigam, em pleno século XXI, fazer mais pelas crianças em Abs.
A população iemenita está a ser empurrada até aos limites absolutos da sua capacidade de superação. A guerra matou pelo menos 233 mil pessoas desde 2015. Causou milhões de deslocados, muitos por múltiplas vezes. Destruiu as infraestruturas do país, em especial o sistema de saúde. Os civis no Iémen não podem continuar assim. As partes envolvidas no conflito e a comunidade humanitária de doadores e de organizações têm de assegurar que as famílias têm acesso a alimentos e a serviços essenciais, e que a assistência humanitária chega efectivamente às pessoas que dela mais precisam.
As crianças que tratamos no Hospital de Abs – e que conseguem, contra todas as probabilidades, superar desnutrição grave, doenças cardíacas, pneumonias e outras doenças graves – não podem ser abandonadas por quem tem o poder para as ajudar.