“Quero viver em qualquer país menos na Síria, onde for seguro e haja escolas e brinquedos”

Segundo um relatório da Save the Children, 86% das crianças sírias refugiadas não quer voltar a casa. Manifestações pacíficas contra o regime de Bashar al-Assad começaram há dez anos. Hoje, 13,2 milhões de sírios vivem longe de casa.

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Lara (nome não é verdadeiro) junto à tenda onde vive, num campo de deslocados na região de Idlib Hurras Network / Save the Children

Nada tem 17 anos e deixou a Síria em 2012. “Não quero voltar para lá”, diz. Também não quer ficar onde está: “Se vamos à escola, somos intimidados e eles dizem-nos que não nos querem”. Lara tem sete anos e a sua família fugiu de casa, em Maarat al-Numan, Idlib, há três anos. “Quero viver em qualquer país menos na Síria, onde for seguro e haja escolas e brinquedos”, afirma. “Aqui o som dos cães assusta-me e a tenda não é segura”, descreve. “O meu futuro é nos Países Baixos; falo melhor holandês do que árabe e economicamente é melhor”, diz um rapaz de 15 anos.

Fossem ou não nascidas, as crianças sírias viram a sua vida virada do avesso pela guerra que se seguiu aos protestos pacíficos iniciados há dez anos no seu país.

A família de Nada instalou-se em Akkar, no Norte do Líbano, enquanto Lara nunca passou a fronteira e vive com os oito irmãos num campo de deslocados na mesma região de Idlib, no Noroeste da Síria. Quando lhe disseram que iam fugir, Lara pôs os seus brinquedos numa mala que decidiu não voltar abrir. Hoje, não quer voltar mas acredita que isso mudará: “Não vou desistir e vou sonhar em ir para casa para poder abrir o meu saco de brinquedos e brincar com Jasmim, o meu urso de peluche”.

Nada e Lara (nenhum nome é verdadeiro) são duas das 1900 crianças sírias entrevistadas na Síria, na Turquia, no Líbano, na Jordânia e nos Países Baixos pela organização não-governamental Save the Children entre Novembro e Dezembro de 2020. O resultado é o relatório Em qualquer lugar menos na Síria – Como dez anos de conflito deixaram as crianças sírias sem se sentir em casa.

Há muitos dados quantitativos sobre a vida das crianças sírias. A propósito do aniversário da revolta contra a ditadura de Bashar al-Assad, muitos têm sido actualizados. Segundo a UNICEF, quase 90% das crianças na Síria precisam de assistência humanitária, mais 20% do que há um ano. Dentro da Síria, 2,45 milhões não vão à escola, enquanto nos países vizinhos outras 750 mil crianças não conseguem estudar.

A situação mais alarmante é a que se vive no Noroeste da Síria, com muitas famílias obrigadas a múltiplas fugas nos últimos anos. É onde vive Lara. Na Síria, “o número de relatos de crianças vítimas de sofrimento psicológico duplicou em 2020”.

“Em qualquer lugar menos na Síria” é um estudo centrado na “segurança psicossocial”. Nas entrevistas com as crianças, estas falam “das suas lutas diárias para se sentirem seguras e em casa onde estão”, “de tentar reclamar as suas infâncias e os seus futuros enquanto encontram inúmeros obstáculos, incluindo discriminação generalizada, perda de influência nas suas próprias vidas e medo de um regresso forçado”, resume Inger Ashing, presidente executiva da ONG Save the Children International.

Três tópicos surgiram como os que mais contribuem para a experiência psicossocial de segurança: o acesso a oportunidades significativas de futuro (“a incerteza sobre o futuro prejudica muito o bem-estar, às vezes mais ainda do que preocupações sobre a segurança física actual”); um sentido de pertença e a influência nas decisões que moldam suas vidas.

Há dados mais e menos óbvios. Entre as crianças refugiadas, 86% não quer regressar à Síria; entre as que vivem na Síria, uma em cada três quer estar noutro lugar. “[Se me for embora], quem tratará dos sonhos dos sírios?”, pergunta uma síria deslocada, de 17 anos. Lara diz que o seu futuro passou a ser “todo sobre a guerra”; muitas crianças perderam irmãos, um dos pais ou não conseguem esquecer a violência, enquanto outras quase não têm recordações do país ou cidade de origem (Kubra, 13 anos, a viver na Turquia, perdeu a mãe numa explosão quando só tinha um ano e só se lembra das roupas que vestia para visitar os avós).

Educação e liberdade

A maioria fala dos desafios de acomodar duas culturas nas suas identidades, particularmente nos Países Baixos. Ali, 64% das crianças entrevistadas sentiu discriminação, quase sempre na escola. No Líbano, muitos adolescentes sentem-se discriminados por serem mais pobres. Mas o grupo com o sentimento de pertença à comunidade mais baixo é o dos deslocados na Síria, o que “pode ser uma indicação de quão devastado está o tecido social no país”.

Questionadas sobre se acreditam que vão conseguir viver onde querem, as mais pessimistas são as que estão na Síria e as mais optimistas as que estão na Europa: todas as crianças nos Países Baixos estão a estudar (na Jordânia, por exemplo, 36% dos refugiados não vai a nenhum tipo de escola) e 70% acredita num “futuro positivo”; quem quer ficar refere a língua, a educação, oportunidades económicas e liberdade como motivos.

Foi na cidade de Deraa que tiveram início as manifestações contra a ditadura, a 15 de Março de 2011. O regime disparou a matar e os protestos espalharam-se. Face à repressão brutal, a revolta tornou-se numa guerra civil com quase todas as potências e países da região a apoiar diferentes grupos. Entretanto, houve o terror do Daesh. O conflito criou uma gigantesca vaga de deslocados: hoje, 13,2 milhões de sírios vivem longe de casa, incluindo 6,6 milhões que são refugiados e mais de seis milhões de deslocados internos.

Ao analisar os resultados do estudo da Save the Children, Ashing, presidente executiva da organização avisa que não há um minuto a perder para salvar o futuro da Síria: “Sejamos claros: a não ser que sejam definidos agora caminhos sólidos para as crianças sírias atingirem todos os seus direitos, há um risco de que este [aniversário] se torne um terrível marco de uma segunda geração de crianças que perdem a oportunidade de uma infância decente e de um futuro”.

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