Os Césares 2021 foram de Adieu les cons e do protesto contra o confinamento cultural (nudez incluída)
Com sete prémios, o filme de Albert Dupontel foi o principal vencedor de uma cerimónia marcada por críticas à decisão do Governo francês de manter as salas de cinema fechadas. Corinne Masiero despiu-se em palco para exibir uma mensagem nua e crua: “No Culture, No Futur”.
Com sete prémios, incluindo os de Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Argumento Original, Adieu les cons, sátira anarco-poética (assim lhe chamou o Le Monde) de Albert Dupontel, consagrou-se como o grande vencedor da 46.ª edição dos Césares, os principais prémios do cinema francês. Mas o protesto contra o confinamento cultural em França, que nas últimas semanas atingiu níveis sem precedentes desde o início da crise pandémica, roubou completamente o palco ao palmarés propriamente dito – para a memória futura dos Césares de 2021 ficará sobretudo uma imagem, a da actriz Corinne Masiero, em nu integral, a exibir no peito uma mensagem crua, “No Culture, No Futur”, e, nas costas, um apelo directo ao primeiro-ministro, Jean Castex: “Devolve-nos a cultura, Jean”.
Com uma pele de burro sobre um vestido tingido de vermelho-sangue e tampões pendurados nas orelhas, Masiero subiu ao palco para entregar o César de Melhor Guarda-Roupa e aproveitou para, já despida, fazer o statement mais gráfico da noite de sexta-feira num Olympia semi-esvaziado, em cumprimento das restrições em vigor em Paris. “Por estes dias, é assim que estamos, totalmente nus”, disse, aludindo à violenta crise que o sector cultural francês atravessa. Solidária com o movimento que já levou à ocupação de vários teatros franceses, incluindo o mítico Odéon, em Paris, pelos intermitentes do espectáculo, a actriz chegou ao Olympia de colete amarelo, exibindo a mesma mensagem de protesto que revelaria mais tarde inscrita na pele. Mas já antes da sua performance-choque, as interpelações à ministra da Cultura, Roselyne Bachelot (presente na cerimónia mas não na sala) dominavam uns Césares que se propunham festejar o cinema francês numa das suas horas mais negras.
Os apelos à reabertura das 6114 salas do país, que se mantêm fechadas há já 128 dias (ao contrário das igrejas, que desde 16 de Janeiro puderam voltar a acolher fiéis), começaram a fazer ouvir-se logo no discurso que abriu a noite, a cargo da anfitriã Marina Foïs, que se declarou saudosa da experiência comunitária do cinema em grande ecrã. “Quero rir-me com desconhecidos. A falta disso faz-me sofrer. Até das vossas pipocas tenho saudades”, lançou, atirando-se depois, irónica, ao Governo de Emmanuel Macron: “Como é um vírus que mata os velhos, fechámos os jovens e encerrámos as salas de espectáculos, para logo a seguir reabrirmos as igrejas, dado que somos um país laico, e optimizarmos os fluxos nas grandes lojas de modo a podermos comprar aqueles presentes de Natal que logo a seguir vão ser revendidos no eBay.”
Mais tarde, também Stéphanie Demoustier, prendada com o César de Melhor Argumento Adaptado, se dirigiria à ministra da Cultura: “Os meus filhos podem ir à Zara, mas não ao cinema... É incompreensível! Precisamos de vontade política para que o cinema possa evoluir, é uma responsabilidade que tem de tomar em mãos como ministra.”
À entrada na cerimónia, a visada Roselyne Bachelot fizera questão de se dizer “ao lado da profissão”, cuja “exasperação” diz compreender após quatro meses de paralisação forçada, e deixou “uma mensagem de esperança": “Estamos neste momento a definir com a fileira [dos exibidores cinematográficos] as condições de reabertura das salas”, disse, prometendo que em breve os franceses poderão voltar a ver filmes.
Um blockbuster confinado e alguma política
Com 720 mil espectadores em apenas nove dias de exibição em sala, antes de um novo confinamento o ter condenado a uma saída de cena precoce, o filme mais premiado da 46.ª edição dos Césares tornou-se um símbolo das atribulações do cinema francês em 2020. Ausente da cerimónia, que boicota há anos em protesto contra aquilo que considera ser um “julgamento intelectual” intolerável, Albert Dupontel, simultaneamente realizador e protagonista de Adieu les cons, arrecadou na noite de sexta-feira o seu segundo César de Melhor Realização (já o vencera em 2018 com Até Nos Vermos Lá em Cima) e o primeiro de Melhor Filme. Os prémios de Melhor Actor Secundário (Nicolas Marié), Melhor Fotografia e Melhor Cenário completariam o palmarés desta obra, distinguida ainda com o César dos Liceais.
O triunfo de Dupontel relegou para segundo plano o principal favorito dos Césares 2021, Emmanuel Mouret, que partia com 13 nomeações para Les Choses qu’on dit, les Choses qu’on fait (conquistou apenas um, o de Melhor Actriz Secundária, para Emilie Dequenne) e François Ozon, cujo Verão de 1985 acabou sem um único prémio.
Outro momento simbólico da noite, a par da homenagem ao recentemente desaparecido Jean-Pierre Bacri, seria a entrega dos Césares de Melhor Esperança, que premeiam jovens actores com especial potencial, a dois intérpretes negros, Jean-Pascal Zadi, por Tout simplement noir, e Fathia Youssouf, por Mignonnes. As preocupações com as questões de representatividade, diversidade e paridade de género foram aliás também inescapáveis, um ano após a acesa polémica que levou à demissão, a 15 dias da cerimónia, da direcção da Academia das Artes e Técnicas do Cinema/Associação para a Promoção do Cinema, instituição responsável pela atribuição dos prémios.
Ensombrada pela muito contestada atribuição a Roman Polanski do César de Melhor Realizador por J'Accuse – O Oficial e o Espião, a gala de há um ano constituiu o último capítulo de uma história da Academia marcada pelo domínio masculino. Uma nova direcção paritária, composta por Véronique Cayla e Eric Toledano, viria a ser eleita em Setembro.