O Tribunal Constitucional e as crises
Mais uma vez teremos, portanto, em plena gestão de uma crise, o Tribunal Constitucional a desempenhar um papel político central.
Durante a crise financeira, o Tribunal Constitucional tornou-se um ator central do sistema político português. Por ele passaram algumas das reformas mais emblemáticas do Governo de Pedro Passos Coelho, sancionadas ou impostas pela troika. Nele tiveram lugar chumbos significativos de políticas de austeridade que colocaram os juízes no foco do escrutínio político e da atenção das próprias instâncias internacionais. Para o bem e para o mal, goste-se ou não se goste, a gestão da crise financeira passou em larga medida pelo crivo do Tribunal Constitucional, que foi chamado a apreciar da constitucionalidade de várias medidas que integravam o que se convencionou designar por “estado de exceção económico-financeira”. A sua jurisprudência desempenhou um importante fator de estabilização e pacificação dos conflitos sociais e, a partir de certo momento, o próprio memorando incentivava o recurso prévio ao Tribunal Constitucional para acautelar a segurança jurídica e evitar surpresas desagradáveis.
A partir de 2016, o Tribunal regressou a um papel secundário, a que foi remetido em virtude da escassez de pedidos de fiscalização abstrata. O ativismo de um tribunal depende sempre dos pedidos e desafios com que é confrontado, e dois dos principais autores de pedidos durante o período da crise têm-se inibido de recorrer ao Tribunal. A atual provedora de Justiça, anterior vice-presidente do Tribunal Constitucional e talvez o membro mais vocal da minoria crítica da “jurisprudência da crise”, apenas suscitou, até à data, três pedidos de fiscalização (dois deles nos últimos seis meses). Também o Presidente da República se tem notabilizado pela cirúrgica parcimónia com que tem recorrido ao Tribunal.
Este papel secundário do Tribunal Constitucional parece agora abalado. Com o pedido de fiscalização da lei da eutanásia, os juízes do Ratton vêem-se de novo no centro do debate político. A este pedido acresce o pedido de fiscalização suscitado pela provedora de Justiça relativamente às alterações à lei eleitoral autárquica sobre as candidaturas de independentes, o qual, se não se apressar no Parlamento a prometida alteração, colocará o Tribunal na pressão de ter de produzir uma decisão num curtíssimo espaço de tempo, de modo a que possa produzir efeito útil. E não nos esqueçamos do pedido pendente, formulado por um grupo de deputados, sobre a lei da identidade de género, com potencial para atrair o Tribunal para o centro das “culture wars” no que se refere ao debate sobre a proteção devida às crianças transgénero. Aliás, ainda recentemente uma peça noticiava que o segundo mandato do Presidente da República será marcado pelos “temas fraturantes”, suspeitando que, tal como sucedeu com eutanásia, questões como a inseminação post-mortem e a gestação de substituição acabem também por chegar ao Tribunal Constitucional em fiscalização preventiva, tentando-se por esta via vetar judicialmente o que a maioria democrática aprovou.
Mais uma vez teremos, portanto, em plena gestão de uma crise, o Tribunal Constitucional a desempenhar um papel político central. Contudo, ao contrário do que sucedeu em 2011-2015, já não será agora chamado a averiguar a validade das medidas de exceção, e sim de “questões fraturantes”, totalmente laterais à crise que atormenta o quotidiano dos portugueses. Se há reflexão que se impõe a este propósito é a do total falhanço do sistema português de fiscalização da constitucionalidade. Quando empresas e cidadãos são confrontados, diariamente, com restrições a direitos fundamentais cujo alcance nem a imaginação mais fértil ousaria, até há pouco tempo, adivinhar, e vemos, por essa Europa fora, tribunais constitucionais ocupados a lidar com as situações de emergência pandémica, percebemos que algo há de muito errado neste nosso modelo de fiscalização da constitucionalidade que deixa a seleção dos casos relevantes, praticamente de modo exclusivo, a meia dúzia de atores institucionais.
Ainda há pouco meses, numa decisão extremamente preocupante, o Supremo Tribunal Administrativo afirmou, a propósito da proibição de ajuntamentos, que o novo direito administrativo da emergência prescinde de lei do Parlamento, bastando-se com resoluções do Conselho de Ministros e guidelines da Organização Mundial de Saúde. Este é um problema da maior importância para o qual importava termos, com urgência, uma decisão do Tribunal Constitucional. Tal como a validade das muitas medidas que têm sido adotadas no âmbito do estado de emergência, como o encerramento das escolas durante tão largo período ou a proibição de saída do território nacional. Como é possível que questões destas, com centralidade inequívoca e de importância fulcral para a gestão da crise, não sejam, por quem de direito, levadas ao Tribunal Constitucional? É que inexistindo vontade institucional para levar ao Tribunal estas questões (por parte do Presidente da República, da Provedora de Justiça, da Procuradora-Geral da República ou de um décimo dos deputados), resta o longo, difícil e incerto calvário dos processos judiciais, uma vez que não temos, ao contrário por exemplo dos alemães, um mecanismo específico destinado à tutela de direitos fundamentais, e que permite em certos casos, uma intervenção extremamente célere e eficaz por parte do Tribunal Constitucional.
A única questão levada ao conhecimento do Tribunal Constitucional em fiscalização abstrata sobre a gestão da pandemia refere-se a uma invocada violação do direito de propriedade dos proprietários ou gestores de centros comerciais por isenção dos lojistas do pagamento da remuneração mínima. Um pormenor, se pensarmos nos grandes conflitos, também em matéria de repartição dos sacrifícios e dos encargos, que a luta contra o vírus veio colocar no cerne do debate, em matéria de solidariedade inter e intrageracional, como as moratórias, as proibições de despejos, os encerramentos forçados, as restrições à circulação ou a obrigação de teletrabalho, com crianças em ensino à distância. O que sobra, então, para o Tribunal Constitucional conhecer, em plena crise pandémica? Os tais “temas fraturantes”, e a expetativa (de alguns) de que o Tribunal atue como agente de veto ou “minoria de bloqueio”.