Racismo

O que significa “ser mestiço” em Lisboa?

A série MIXED faz o retrato de residentes da cidade de Lisboa que têm em comum o facto de serem, nas palavras do fotógrafo Theo Gould, "mestiços". Nunca pertencer inteiramente a um lugar, ser recorrentemente "colocado numa caixa" e ser "demasiado claro ou escuro" aos olhos de uma comunidade são experiências quotidianas entre os retratados.

©Theo Gould
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©Theo Gould

O fotógrafo Theo Gould nasceu em Londres. A mãe provém do Quénia e foi adoptada, em tenra idade, por uma família inglesa. O pai nasceu em Manchester, filho de pais de nacionalidade bielorrussa e iraniana, ambos judeus de origens sefardita e asquenaze. Hoje, e desde há quatro anos, Theo vive em Lisboa, onde dedica parte do tempo a desenvolver um projecto fotográfico que explora questões identitárias relacionadas com cultura e raça. Chama-se MIXED e consiste numa série de retratos de residentes da cidade de Lisboa que têm algo em comum: são, como denomina o próprio fotógrafo, "mestiços". E não só. Mas já lá vamos.

"Na escola, em Londres, eu e mais três ou quatro miúdos éramos os únicos de origem africana", conta Theo ao P3, em entrevista. Pertencer a uma minoria racial foi uma experiência que o marcou profundamente. "Conhecendo a história da minha família e das culturas que ela encerra, era praticamente impossível excluir as questões raciais do meu objecto de trabalho", refere. Assim, em meados de Setembro de 2020, o fotógrafo deu início ao projecto que aborda os temas do racismo, xenofobia, repressão cultural.

"Cada sessão fotográfica começa com uma conversa sobre o significado de ser mestiço e a experiência de crescer em dois, ou mais, mundos ou culturas, mas nunca pertencer realmente", explica. Todas as pessoas que Theo entrevistou tinham experiências comuns. "A sensação constante de não encaixarem em lugar nenhum ou de terem de abdicar de parte da sua identidade para se integrarem." E dá o exemplo de Natalí. Os seus pais são brasileiros, mas ela nasceu e cresceu na Argentina. A rivalidade entre os dois países coloca-a, não raramente, numa posição delicada. Natalí sente-se presa entre as duas nacionalidades. "Não quer virar as costas à sua herança cultural nem ao seu local de nascimento." 

Manu nasceu no Brasil. Os antepassados da mãe, brasileira, eram europeus e indígenas. Os avós paternos eram imigrantes japoneses. "Na escola, o que ela mais queria era integrar-se e chegou a lamentar ter feições tão asiáticas", refere Gould. O seu aspecto físico sempre a diferenciou, dando azo a situações que se foram repetindo ao longo da vida. "As pessoas tentam colocar pessoas diferentes em caixas e tentam quase sempre adivinhar de onde são." Bianca, por exemplo, nasceu na Alemanha e cresceu em Portugal. O pai é alemão e a mãe é cabo-verdiana. "Para os amigos, ela foi quase sempre 'a amiga preta'. E embora tenha dupla nacionalidade, quando se descreve como alemã as pessoas reagem dizendo 'tu não pareces nada alemã'."

"Há quem faça comentários racistas à tua frente achando que 'se vai safar' porque crê que tu, não sendo inteiramente preto ou inteiramente branco, não irás ficar ofendido", refere o fotógrafo, que sofreu na pele, também, algum racismo. O seu trabalho é assumida e inevitavelmente de cariz político. Levando em consideração a sua história pessoal e familiar, o fotógrafo não se podia "dar ao luxo" de produzir obra sem mensagem política. "Com o crescimento do fascismo e da extrema-direita, é essencial promover diálogo sobre raça", justifica. A globalização e a normalização dos relacionamentos inter-raciais darão, mais cedo ou mais tarde, na opinião do fotógrafo, origem a crianças que viverão livres de rótulos raciais. Um aspecto positivo, realça. "A pureza racial não só é indesejada como totalmente inatingível."

Porquê Lisboa? "Essa é de resposta fácil: porque vivo aqui", graceja. A pergunta tem várias camadas e Gould compreende o que está em causa. "Portugal é muito interessante, do ponto de vista racial, por ser uma espécie de caldeirão cultural desde há milhares de anos. Estou ciente do passado colonial português e esse tema é sempre discutido nas sessões fotográficas."

Após quatro anos a residir em Portugal, Gould tem a sensação que o passado colonial português é tratado, nas escolas, de forma superficial e pouco crítica, "o que gera sentimentos de orgulho" que podem dar origem a polarização entre grupos. No Reino Unido passa-se o mesmo, garante, e contra isso existe apenas uma arma: o conhecimento. "Muitas das pessoas que retratei são parte colonizador e parte colonizado. Elas estão em melhor posição para falar sobre o assunto." Theo Gould, um dos fotógrafos finalistas da presente edição dos Sony World Photography Awards, promete dar seguimento a MIXED.

Natali nasceu em Buenos aires e é filha de pais brasileiros. A sua mãe é de São Paulo e o seu pai é da Bahía. Contou a Theo que nem sempre foi fácil crescer parte brasileira parte argentina, devido à grande rivalidade que existe entre o Brasil e a Argentina, muito intensa sobretudo quando as duas selecções nacionais de futebol se defrontam em competição. Sentia-se presa entre as duas nacionalidades, não querendo torcer por nenhuma das equipas por não querer virar as costas à sua herança cultural ou ao seu local de nascimento. Contou também que, na Argentina, há poucas pessoas de cor e que ela era a única na sua escola. Recorda-se de ser insultada e gozada pelos colegas, de forma racista, por ser diferente. Então, não conseguia compreender porquê.
Natali nasceu em Buenos aires e é filha de pais brasileiros. A sua mãe é de São Paulo e o seu pai é da Bahía. Contou a Theo que nem sempre foi fácil crescer parte brasileira parte argentina, devido à grande rivalidade que existe entre o Brasil e a Argentina, muito intensa sobretudo quando as duas selecções nacionais de futebol se defrontam em competição. Sentia-se presa entre as duas nacionalidades, não querendo torcer por nenhuma das equipas por não querer virar as costas à sua herança cultural ou ao seu local de nascimento. Contou também que, na Argentina, há poucas pessoas de cor e que ela era a única na sua escola. Recorda-se de ser insultada e gozada pelos colegas, de forma racista, por ser diferente. Então, não conseguia compreender porquê. ©Theo Gould
O nome verdadeiro de Billy é Abílio, à semelhança do do seu pai e do seu avô. Nasceu em Angola e veio para Portugal ainda bebé. A sua família abandonou o país devido à guerra civil que durou, entre pausas, 27 anos. Apesar de ter vivido em Portugal quase toda a vida, ele identifica-se como angolano. Durante a conversa com Theo, o tema das origens ganhou terreno. Durante a adolescência, Billy começou a passar os natais em Angola e, apesar de nunca ter vivido lá, ele achou o país muito familiar por ser exactamente como os pais o descreveram. Apesar disso, não considera Angola a sua casa. Portugal será sempre a sua casa.
O nome verdadeiro de Billy é Abílio, à semelhança do do seu pai e do seu avô. Nasceu em Angola e veio para Portugal ainda bebé. A sua família abandonou o país devido à guerra civil que durou, entre pausas, 27 anos. Apesar de ter vivido em Portugal quase toda a vida, ele identifica-se como angolano. Durante a conversa com Theo, o tema das origens ganhou terreno. Durante a adolescência, Billy começou a passar os natais em Angola e, apesar de nunca ter vivido lá, ele achou o país muito familiar por ser exactamente como os pais o descreveram. Apesar disso, não considera Angola a sua casa. Portugal será sempre a sua casa. ©Theo Gould
Bianca nasceu na Alemanha e cresceu em Portugal. O seu pai é do sul da Alemanha e a sua mãe é cabo-verdiana. Bianca conversou extensivamente com Theo sobre a experiência de crescer num país predominantemente branco e sobre como isso afectou a forma como se olha para ela. Conta que se sente mais preta do que branca devido ao seu aspecto. Para os seus amigos, ela foi quase sempre "a amiga preta". E embora ela tenha dupla nacionalidade, quando ela se descreve como alemã, as pessoas reagem dizendo "tu não pareces alemã".
Bianca nasceu na Alemanha e cresceu em Portugal. O seu pai é do sul da Alemanha e a sua mãe é cabo-verdiana. Bianca conversou extensivamente com Theo sobre a experiência de crescer num país predominantemente branco e sobre como isso afectou a forma como se olha para ela. Conta que se sente mais preta do que branca devido ao seu aspecto. Para os seus amigos, ela foi quase sempre "a amiga preta". E embora ela tenha dupla nacionalidade, quando ela se descreve como alemã, as pessoas reagem dizendo "tu não pareces alemã". ©Theo Gould
João nasceu em Portugal. Os seus avôs eram portugueses e as suas avós eram angolana e moçambicana. Abandonou Portugal em direcção aos Países Baixos para seguir carreira de chef. Descreve o país como "a América da Europa" devido à sua diversidade cultural. Após 8 anos, regressou a Lisboa, onde cozinha uma mistura de comida chinesa, caribenha, africana e portuguesa.
João nasceu em Portugal. Os seus avôs eram portugueses e as suas avós eram angolana e moçambicana. Abandonou Portugal em direcção aos Países Baixos para seguir carreira de chef. Descreve o país como "a América da Europa" devido à sua diversidade cultural. Após 8 anos, regressou a Lisboa, onde cozinha uma mistura de comida chinesa, caribenha, africana e portuguesa. ©Theo Gould
Denise nasceu em Lisboa e é filha de pais cabo-verdianos. Cresceu na parte italiana da Suiça. Apesar de ter vivido quase toda a sua vida na Suiça, considera o seu sangue cabo-verdiano, a sua língua materna o italiano e a sua cidade-berço Lisboa. Descreve a sua cidade como uma ponte entre a Europa e África, motivo pelo qual sente que a complexidade da sua identidade é compreendida em Lisboa sem ter de explicá-la. Denise é cineasta e fala seis línguas: italiano, português, francês, espanhol, inglês e crioulo.
Denise nasceu em Lisboa e é filha de pais cabo-verdianos. Cresceu na parte italiana da Suiça. Apesar de ter vivido quase toda a sua vida na Suiça, considera o seu sangue cabo-verdiano, a sua língua materna o italiano e a sua cidade-berço Lisboa. Descreve a sua cidade como uma ponte entre a Europa e África, motivo pelo qual sente que a complexidade da sua identidade é compreendida em Lisboa sem ter de explicá-la. Denise é cineasta e fala seis línguas: italiano, português, francês, espanhol, inglês e crioulo. ©Theo Gould
Yu Lin nasceu e cresceu em Milão. O seu pai é suiço-alemão e a sua mãe tem as nacionalidades francesa, chinesa e vietnamita. A sua mãe nasceu no Vietname, mas foi adoptada por pais de nacionalidade francesa e chinesa, que se conheceram em Xangai. Yu Lin só descobriu que era adoptada quando tinha mais de 30 anos. Enquanto crescia, em Itália, sentia que não pertencia àquele lugar. Dedicou-se ao estudo de Ciência Política para poder contribuir, activamente, para a alteração da legislação que lhe negou, durante anos, a cidadania italiana.
Yu Lin nasceu e cresceu em Milão. O seu pai é suiço-alemão e a sua mãe tem as nacionalidades francesa, chinesa e vietnamita. A sua mãe nasceu no Vietname, mas foi adoptada por pais de nacionalidade francesa e chinesa, que se conheceram em Xangai. Yu Lin só descobriu que era adoptada quando tinha mais de 30 anos. Enquanto crescia, em Itália, sentia que não pertencia àquele lugar. Dedicou-se ao estudo de Ciência Política para poder contribuir, activamente, para a alteração da legislação que lhe negou, durante anos, a cidadania italiana. ©Theo Gould
Tatiana nasceu em Angola e mudou-se, recentemente, para Portugal para estudar Arquitectura. O seu pai é português e a sua mãe é angolana. Disse a Theo que o que motivou a sua saída de Angola foi a forma como era tratada. Agora que está em Portugal, ela explicou que tem mais independência e melhor qualidade de vida, lembrando episódios em que pessoas, em Angola, lhe atiraram pedras e latas de bebidas vazias sem serem provocadas, na rua. Quando Theo lhe perguntou porquê, ela explicou que em Angola existe a percepção de que pessoas de pele mais clara têm mais privilégios. Por isso, pessoas de pele mais clara têm maior probabilidade de serem maltratadas.
Tatiana nasceu em Angola e mudou-se, recentemente, para Portugal para estudar Arquitectura. O seu pai é português e a sua mãe é angolana. Disse a Theo que o que motivou a sua saída de Angola foi a forma como era tratada. Agora que está em Portugal, ela explicou que tem mais independência e melhor qualidade de vida, lembrando episódios em que pessoas, em Angola, lhe atiraram pedras e latas de bebidas vazias sem serem provocadas, na rua. Quando Theo lhe perguntou porquê, ela explicou que em Angola existe a percepção de que pessoas de pele mais clara têm mais privilégios. Por isso, pessoas de pele mais clara têm maior probabilidade de serem maltratadas. ©Theo Gould
Iara nasceu em Portugal e cresceu em Sines, no Alentejo. O seu pai é português e a sua mãe tem herança cabo-verdiana e moçambicana. Embora sempre tenha tido consciência racial, foi durante os protestos do movimento Black Lives Matter que começou a falar abertamente, com os amigos e família, sobre questões relacionadas. Cresceu numa vila onde existem mais pessoas de raça negra, mas não cresceu no bairro onde vive a maioria dessas pessoas. A maioria dos seus amigos são brancos. Iara acredita que existe uma separação racial em Sines e lamenta o facto de não ser aceita, também, pela comunidade negra. Sente que tem sorte por ter experienciado formas ligeiras de racismo, comentários acerca do seu cabelo ou "és muito bonita para preta", Iara acredita que esses comportamentos são um sintoma de um problema maior.
Iara nasceu em Portugal e cresceu em Sines, no Alentejo. O seu pai é português e a sua mãe tem herança cabo-verdiana e moçambicana. Embora sempre tenha tido consciência racial, foi durante os protestos do movimento Black Lives Matter que começou a falar abertamente, com os amigos e família, sobre questões relacionadas. Cresceu numa vila onde existem mais pessoas de raça negra, mas não cresceu no bairro onde vive a maioria dessas pessoas. A maioria dos seus amigos são brancos. Iara acredita que existe uma separação racial em Sines e lamenta o facto de não ser aceita, também, pela comunidade negra. Sente que tem sorte por ter experienciado formas ligeiras de racismo, comentários acerca do seu cabelo ou "és muito bonita para preta", Iara acredita que esses comportamentos são um sintoma de um problema maior. ©Theo Gould
Manu nasceu e cresceu no Brasil, no estado de São Paulo. A sua mãe é brasileira, os seus antepassados são europeus e indígenas. Os seus avós paternos, imigrantes japoneses, chegaram ao Brasil para fugir à II Guerra Mundial. Embora o Brasil tenha mais pessoas com antepassados japoneses do que qualquer outro país fora do Japão (concentrados, sobretudo, em São Paulo), Manu não foi exposto à cultura japonesa. O seu pai quis ser visto e aceite como brasileiro, então manteve-se afastado da cultura japonesa durante a sua vida. Em resultado, Manu nunca se interessou pelo Japão. Na escola, o que mais queria era integrar-se e chegou a lamentar ter feições tão asiáticas. Tudo mudou quando aos 18 anos se mudou para Tóquio. Aprendeu japonês e começou a aprender mais sobre a sua herança. Depois de passar 8 anos em Nova Iorque, Manu agora vive em Lisboa. O seu pai vive em São Paulo, a sua mãe vive em Sintra, o seu irmão vive em Espanha e a irmã em Itália. Não sente que haja algo à sua espera no Brasil. Também não se sentiu americana. Não se sente portuguesa, mas é o lugar onde se sente melhor.
Manu nasceu e cresceu no Brasil, no estado de São Paulo. A sua mãe é brasileira, os seus antepassados são europeus e indígenas. Os seus avós paternos, imigrantes japoneses, chegaram ao Brasil para fugir à II Guerra Mundial. Embora o Brasil tenha mais pessoas com antepassados japoneses do que qualquer outro país fora do Japão (concentrados, sobretudo, em São Paulo), Manu não foi exposto à cultura japonesa. O seu pai quis ser visto e aceite como brasileiro, então manteve-se afastado da cultura japonesa durante a sua vida. Em resultado, Manu nunca se interessou pelo Japão. Na escola, o que mais queria era integrar-se e chegou a lamentar ter feições tão asiáticas. Tudo mudou quando aos 18 anos se mudou para Tóquio. Aprendeu japonês e começou a aprender mais sobre a sua herança. Depois de passar 8 anos em Nova Iorque, Manu agora vive em Lisboa. O seu pai vive em São Paulo, a sua mãe vive em Sintra, o seu irmão vive em Espanha e a irmã em Itália. Não sente que haja algo à sua espera no Brasil. Também não se sentiu americana. Não se sente portuguesa, mas é o lugar onde se sente melhor. ©Theo Gould
Beatriz nasceu em Portugal e considera-se portuguesa. Os seus avós maternos são da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Os seus avós paternos são de Portugal e Moçambique. A Beatriz considera-se três quartos africana, embora tenha olhos verde claro e pele clara.
Beatriz nasceu em Portugal e considera-se portuguesa. Os seus avós maternos são da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Os seus avós paternos são de Portugal e Moçambique. A Beatriz considera-se três quartos africana, embora tenha olhos verde claro e pele clara. ©Theo Gould