Carta aberta a António Costa. Por uma habitação para todos. Por uma construção verde, inovadora e de qualidade
Queremos uma estratégia de Habitação Pública que seja sustentável e resiliente na garantia das suas funções sociais e que, simultaneamente, coloque o país numa rota virtuosa de desenvolvimento. Na sua actual versão, as ambições do Programa de Recuperação e Resiliência são manifestamente insuficientes.
Exmo. primeiro-ministro,
O Programa de Recuperação e Resiliência é um instrumento fundamental para que Portugal disponha de um Parque de Habitação Pública de qualidade e capaz de minimizar a despesa pública estrutural nesta área. Na sua actual versão, as suas ambições são manifestamente insuficientes.
O país tem os profissionais e o espaço para atingir o nível de desenvolvimento dos parceiros europeus em lugares cimeiros do sector. É urgente enquadrar este potencial numa política coesa e coordenada, integrando-o numa cultura que promova a qualidade e a sustentabilidade como valores estruturantes. Deste modo, a estratégia do PRR deve ser repensada em dois eixos: [1] um Parque de Habitação Pública robusto e autossuficiente (num quadro em que a Habitação Acessível para a classe média financia a Habitação Social) e [2] a obrigatória reforma estrutural do sector da construção e da indústria transformadora associada.
1. Por uma habitação para todos
Nos últimos 35 anos, as políticas de habitação do Estado têm consistido fundamentalmente em habitação social e incentivos para a classe média (crédito bonificado e benefícios fiscais). Esta política estruturou um Estado que dispõe hoje de escassos mecanismos de resposta a crises habitacionais, visto que o Parque de Habitação Público corresponde a cerca de 2% do total da habitação do país - uma das proporções mais baixas da UE e em linha com os países menos desenvolvidos da comunidade.
Construída a custos controlados e índices de qualidade construtiva reduzidos, estima-se que a manutenção do actual Parque de Habitação Social gere um défice anual de pelo menos 120 milhões de euros. Ao abrigo do “1º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação”, o Programa de Recuperação e Resiliência prevê reforçar o Parque de Habitação Social em pelo menos 26.000 fogos, o que representa um acréscimo de cerca de 22%. Este é um investimento necessário para garantir o acesso a habitação digna às camadas da população mais desprotegidas, mas do qual decorrem, desde logo, dois problemas: a curto prazo, o preço médio/m2 de construção proposto é irrealista (<600 €/m2) e incompatível com uma construção de qualidade e duradoura; como consequência, os custos de manutenção futuros do Parque de Habitação Social irão aumentar sem se adivinharem fontes próprias de financiamento que os suportem.
Pela primeira vez na história da Democracia, o Estado propõe-se a desenvolver uma resposta para o problema da Habitação Pública para a classe média (Habitação Acessível), iniciativa que saudamos. No entanto, a proposta actual ignora o historial de dificuldades crónicas na execução de políticas de habitação, replicando os processos complexos, burocráticos e lentos do passado. Esta dificuldade é bem ilustrada pela decisão de responsabilizar os municípios pela execução dos programas - entidades que, em muitos casos, possuem recursos técnicos limitados para o executar.
No caso da Habitação Acessível, a proposta de construção de 6500 novos fogos (através de um empréstimo de 774 milhões de euros) representa apenas 0,11% do Parque de Habitação Total. Existe uma necessidade e uma procura expressivas, e a experiência de outros países demonstra que a Habitação Acessível, quando bem executada, pode ser uma operação financeira com retorno, sobretudo se for executada de forma célere por profissionais e estruturas qualificadas.
Posto isto, é imperativo que o Estado aproveite as condições inéditas de financiamento a 30 anos que nos são apresentadas. Por que razão não pode o Estado investir em operações com retorno financeiro (a médio/longo prazo) como acontece noutros países da Europa? Por que razão não pode o Estado ter uma visão estratégica de um Parque de Habitação Público autossuficiente e gerador de rendimento? Por que razão não podem ser aplicadas as soluções que em Amesterdão, Copenhaga ou Viena têm resultados comprovados?
O empréstimo do PRR, à taxa de juro europeia, é uma oportunidade para investir a condições provavelmente irrepetíveis que não podemos desperdiçar, em especial quando falamos de investimentos que se pagam a si mesmos. Apesar de contribuir para o aumento da dívida pública a curto prazo, qualquer analista de rating verifica, a partir da geração de cash flows positivos, que esta é uma intervenção que contribui para a sustentabilidade das contas públicas, ainda mais quando contribui para diminuir o défice estrutural do Parque de Habitação Social.
Por exemplo, estima-se que com um investimento de 6150 milhões de euros seja possível construir entre 55.850 e 63.345 novos fogos sociais e acessíveis até 2028, atingindo-se a autonomia financeira do Parque de Habitação Público em 2032. Nesse ano, com as receitas do Parque de Habitação Acessível de pelo menos 400 milhões de euros/ano é possível liquidar o empréstimo do PRR (200 milhões/ano) e financiar o Parque de Habitação Social na sua totalidade (150 mihões/ano), tendo ainda uma margem de 50 milhões de euros/ano para continuar a investir no Parque de Habitação Público (e gerir potenciais variações nas taxas de juro) sem recorrer aos contribuintes. Esta é uma estimativa que prevê a geração de cash flow positivo a partir de 2029 e que garante que o Parque de Habitação Público não gera mais dívida pública para além do investimento original.
Apenas pela criação de um Parque de Habitação Acessível robusto, de dimensão muito superior ao proposto e com uma execução performativa, contemporânea e transparente, seremos capazes de financiar o Parque de Habitação Social no futuro e responder às necessidades urgentes de habitação para classe média nos próximos cinco anos. Em suma, queremos uma estratégia de Habitação Pública que seja sustentável e resiliente na garantia das suas funções sociais e que, simultaneamente, coloque o país numa rota virtuosa de desenvolvimento. Mais do que um investimento, esta é uma estratégia que poderá dinamizar toda uma indústria, com padrões de qualidade exigentes e retorno elevado, começando pelo centro das nossas vidas – a casa.
2. Por uma construção de qualidade, verde e inovadora
Numa altura em que o Estado se prepara para investir em obras públicas e infraestruturas numa estratégia pública ambiciosa, reformar o sector da construção na sua globalidade torna-se imperativo. Com uma baixa produtividade, décadas de atraso tecnológico, inovação residual e competitividade baseada no volume a baixo custo na indústria transformadora associada, é hoje um dos sectores mais ultrapassados da nossa economia. Preços base desligados da realidade, regulamentos obsoletos e ineficazes que promovem desperdícios, estratégias de reabilitação descontextualizadas, com práticas construtivas arcaicas de elevado impacto ambiental, recorrendo inevitavelmente à importação sempre que se pretendem produtos de melhor qualidade – é esta a realidade com que projetistas como nós se confrontam na reabilitação e construção das cidades. Esta espiral perdulária, que conta em muito com a desresponsabilização do Estado, tem contribuído para perdas económicas substanciais, desde logo com custos de manutenção elevados a longo prazo, bem como a modos de habitar do passado desligados das exigências contemporâneas.
O país deve dedicar parte do volume de investimento da próxima década a um sector tão estratégico como o da construção, apostando no desenvolvimento, inovação e qualificação das indústrias associadas. Com o design e a sustentabilidade no centro da produção, a indústria pode criar e exportar produtos com elevado valor acrescentado. Hoje, este cenário é a excepção e não a regra. O potencial existe e o país tem os quadros para o executar, mas este apenas poderá ser realizado com um papel activo, claro e forte do Estado, tanto no lado da oferta como no lado da procura. Este foi o caminho percorrido por outros países no passado (Alemanha, França, Suécia e Suíça), assente numa cultura da qualidade, com o sucesso que é reconhecido. Esta estratégia é ainda mais pertinente hoje, seguindo o movimento do Novo Bauhaus Europeu lançado pela União Europeia no fim de 2020.
São necessárias reformas estruturais agora. E o Governo, enquanto responsável pelo planeamento dessas mesmas reformas, tem de ouvir os técnicos e as suas propostas concretas, assimilando no Plano de Recuperação e Resiliência o que só a experiência no terreno pode dar, promovendo um Parque de Habitação Público autossuficiente e uma construção de qualidade, verde e inovadora. Está ao nosso alcance.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico
Subscritores: Alice Clanet-Hallard, Daniela Figueiredo, Edgar Brito, Nuno Reis Pereira, Manuel Carvalho, Patrícia da Silva, Pedro Bragança, Ahmed Belkhodja, Alexandra Areia, Ana Catarina Costa, Ana Luísa Soares, Amélia Brandão Costa, António Pedro Faria, Bernardo Amaral, Bruno Costa, Carine Pimenta, Carlos Azevedo, Carlos Machado e Moura, Diogo Aguiar, Diogo Vasconcelos, Filipe Madeira, Filipe Magalhães, Filipe Paixão, Frederico Martinho, Hugo Barros, Hugo Moura, Inês Abreu Ribeiro, Inês Morão Dias, Ivo Poças Martins, Jérémy Pernet, João Crisóstomo, Luís Sobral, Luis Ferro, Marco Zelli, Miguel Roque, Nuno M. Sousa, Nuno Gaspar, Pablo Rebelo, Paulo Vale Afonso, Pedro Baía, Pedro Canotilho, Pedro Pita, Ricardo Conde, Ricardo Leitão, Rita Furtado, Rodrigo Costa Lima, Rui Filipe Pinto, Rui Neto, Sofia Paredela, Vânia Saraiva