Ferro Rodrigues: dos “perigos do extremismo” ao recado a Cavaco sobre a “democracia sem mordaças”
Presidente do Parlamento enalteceu o papel “crucial” de Marcelo para evitar crises políticas depois dos incêndios de 2017 e no meio da pandemia. E também o seu papel para o bom desempenho do Governo na área económica.
Num discurso em que até listou os desafios do Presidente para os próximos anos, Eduardo Ferro Rodrigues elogiou sobejamente Marcelo Rebelo de Sousa, defendeu a prioridade à recuperação económica e social, a necessidade de lutar contra os perigos do radicalismo e do extremismo e contrariou a visão de Cavaco Silva, defendendo que nos últimos cinco anos a democracia portuguesa é “mais diversa e inclusiva”, “sem restrições ou mordaças”.
O presidente da Assembleia da República começou por tentar desmontar os argumentos de que o país está menos democrático devido à pandemia, admitindo que a cerimónia de tomada de posse teve de se constranger à situação, mantendo embora “solenidade e significado” e devendo ter uma “audiência atenta”, num sinal de que aí vinham recados. Ferro recordou que a campanha e as eleições presidenciais decorreram “sem percalços e sem efeito assinalado na propagação do coronavírus, contrariando os receios mais alarmistas” e sem recurso a “expedientes circunstanciais que seriam verdadeiras entorses à democracia”.
Depois analisou os cinco anos de mandato presidencial, mas sob a perspectiva socialista: por isso falou de “momentos marcantes” e de “sucessos”, com o “prestimoso contributo” de Marcelo. Lembrou a reposição de direitos e garantias que tinham sido retirados pela intervenção da troika, o que levou ao “esvaziamento da tensão social e até institucional que existia”, a “trajectória positiva” que superou a grave crise económica e financeira e levou ao primeiro excedente orçamental, os sucessos internacionais nas frentes diplomática (com a eleição de Guterres para a ONU), cultural e desportiva.
“Portugal recuperou prestígio, tornou-se uma referência e um destino preferencial. E nós retomámos o orgulho de sermos portugueses”, vincou Ferro. Acrescentou que, em cinco anos, as eleições trouxeram “reconfigurações do panorama político”, com o surgimento de novos partidos, e defendeu: “A democracia tornou-se mais diversa e inclusiva, com uma representatividade acrescida, reveladora de um Portugal com um pleno sentido da liberdade, sem restrições ou mordaças.” Um recado que, devido ao último termo, foi lido como direitinho para Cavaco Silva, que no sábado acusou o poder socialista de tentar “amordaçar a democracia”.
Mas os recados à direita não se ficaram por aqui. Ferro foi buscar o discurso de Marcelo na hora da vitória, que classificou como uma “demonstração de repúdio do extremismo” pelos eleitores, já que André Ventura fixara como objectivo levá-lo à segunda volta. A segunda figura do Estado, que sucessivamente tem entrado em conflito com o deputado do Chega, diz que os extremismos exigem “acção e resposta determinadas” numa altura em que ressurgem movimentos e ideais de extrema-direita com substancial peso político mesmo em países da União Europeia de “sólidas tradições democráticas”.
A explicação para este fenómeno está na polarização política, nos populismos, nas desigualdades que fragilizam a coesão social, na corrupção, nos ataques ao Estado de Direito, na xenofobia e no racismo, foi elencando Ferro Rodrigues, que somou ainda a estas tendências a “promoção do autoritarismo” e a manipulação e desinformação, através das novas tecnologias.
“Surgindo por vezes sob a capa de nacional-populismo ou de movimentos inorgânicos, o radicalismo e o extremismo são, inquestionavelmente, perigos para a democracia, com as dicotomias anti-sistema, repletas de respostas falaciosas e impraticáveis, sem adesão à realidade e com difícil relação com a verdade e os factos. É um fenómeno que explora, oportunista que é, os receios da população e as dificuldades que os governos democráticos têm manifestado na resposta – e que perturbações como a pandemia tendem a acentuar.” E que leva ao afastamento das pessoas das instituições e da política. “Como políticos e como cidadãos, não podemos deixar que aquilo que chega a parecer uma tendência suicidária de algumas democracias nos afecte”, defendeu.
Ferro identificou como pontos dramáticos do primeiro mandato de Marcelo os incêndios de 2017 e este ano inteiro de pandemia de covid-19, salientando o papel “crucial” de um Presidente “moderador” que evitou somar a estas desgraças uma crise política, garantindo a estabilidade e o regular funcionamento das instituições. Neste segundo mandato, o rol de preocupações, além da pandemia e do combate aos extremismos, inclui as alterações climáticas, a qualificação da população, a transição digital, as migrações e asilo, assinalou o presidente da Assembleia da República, como que fazendo a agenda de Marcelo.
Para já, a prioridade no curto prazo é o combate à pandemia, e no médio prazo é a “recuperação sustentada dos danos” que ela causou, da saúde à economia, na educação e na sociedade. E para isso o Parlamento tem tido também o seu papel, quis vincar o seu presidente, mesmo que às vezes pareça que “não se discutem os assuntos, as propostas ou os projectos”, como lamentou. Mas escolheu um exemplo extremo: o do novo aeroporto de Lisboa. “Há um momento em que é necessário dar a discussão por concluída e decidir”, vincou Ferro, numa altura em que PS e PSD se preparam para alterar no Parlamento a lei que dá poder de veto aos municípios em projectos como o aeroporto.
“A avaliação, essa, far-se-á nas urnas”, disse Ferro Rodrigues, sublinhando a tarefa do Parlamento: “Garantir a boa utilização dos dinheiros públicos e dos fundos europeus, que a recuperação prevista não deixe ninguém para trás, que sejam asseguradas mais oportunidades de ascensão social.”
Sobre Marcelo, Ferro Rodrigues (que há um ano dizia que votaria em Marcelo, quando já se falava na possível candidatura de Ana Gomes) desfez-se em elogios: um “defensor acérrimo da democracia e dos seus princípios, que respeita o pluralismo e a diferença e que nunca desiste da justiça social”, alguém que respeita de forma imparcial os valores constitucionais, que tem “total deferência” pela separação de poderes e interdependência. E prometeu-lhe “total lealdade institucional” por parte do Parlamento. No final, apenas o PS e alguns deputados do PSD o aplaudiram.