Vai arrancar a America’s Cup, “um estilo de vida que se pode tornar obsessão”

Nos AC75, os veleiros da mais antiga competição do mundo, os sistemas de voo são “11 vezes mais complexo do que o do Airbus A380”

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No mundo da vela, quando se recordam histórias repletas de heroísmo ou estoicidade, é inevitável pensar na Ocean Race ou na Vendée Globe, regatas em que a glória vai para o veleiro que der a volta ao mundo em primeiro lugar. Porém, não há nenhum outro troféu que supere em prestígio, mediatismo e magnitude a America’s Cup (AC), a mais antiga competição do mundo. Na madrugada desta quarta-feira (3h, RTP2), arranca na Nova Zelândia o duelo entre o Emirates Team New Zealand (defender) e o Luna Rossa Prada Pirelli Team (challenger), e Renato Conde, que integrou o projecto da Ineos Team UK, explica o que esta competição, em que “o sistema de voo” dos AC75 é “11 vezes mais complexo do que o do Airbus A380” e onde há equipas que investiram mais de 200 milhões de euros, tem de tão especial: “É um estilo de vida, que se pode tornar numa obsessão.”

Quando Pierre de Coubertin, o criador dos Jogos Olímpicos, nasceu, em 1863, já tinham passado 12 anos desde que, durante a Exposição Universal de Londres, uma regata em redor da Ilha de Wight, ao largo de Portsmouth, colocara frente a frente o veleiro norte-americano “America” e 15 barcos britânicos. A embarcação do New York Yacht Club precisou de 10 horas e 34 minutos para percorrer as 53 milhas náuticas e bater a concorrência. Quase 170 anos depois, se os AC75 do Team New Zealand ou do Luna Rossa repetissem a mesma rota, precisariam de 1h30 para completar o trajecto.

Numa competição que é sinónimo de inovação e avanços tecnológicos, os ultramodernos AC75, monocascos de 75 pés (22,86 metros) que atingem velocidades impressionantes – durante a Prada Cup, regata que garantiu ao Luna Rossa o estatuto de challenger, o American Magic chegou aos 53,31 nós (98,7km/h) -, são tão sofisticados que “chega a ser difícil de explicar a complexidade que têm”. Quem o diz é Renato Conde, que conhece como poucos o veleiro projectado pelos neozelandeses para esta competição.

Com um vasto currículo como velejador, este aveirense socorreu-se dos conhecimentos adquiridos ao longo dos anos na Delmar Conde, o estaleiro de construção naval do seu pai em Ílhavo, para se tornar num dos mais requisitados especialistas em mastros, cabos, foils ou compósitos, seja por equipas da Ocean Race, do Sail GP, do GC32 ou da AC.

Depois de colaborar no desenvolvimento dos foils do Team Japan na edição anterior realizada nas Bermudas, Renato Conde foi convidado por Ben Ainslie e Andy McLean para integrar o projecto do Ineos Team UK, equipa que foi derrotada pelo Luna Rossa na final da Prada Cup, estando directamente envolvido no desenvolvimento dos foils, um dos “dois pontos mais importantes” do barco: “O outro são as velas, que têm que ter uma cumplicidade grande com os foils.”

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Renato Conde trabalhou no desenvolvimento do AC75 da Team UK Diogo Ramos Moreira

Em conversa com o PÚBLICO, Conde confessa que a primeira vez que viu o projecto do AC75, achou que havia “ousadia a mais”. “Quando começámos a reunir tudo o que era preciso para termos um protótipo a navegar, tentámos fazer um barco o mais pequeno possível, com 7,5 metros. A margem de erro era tão grande que nem sabíamos se ia navegar e voar. Na primeira vez que o colocámos na água, virou. Não ficava em pé. Passar para um de 75 pés, com as cargas e velocidades que teria, era assustador.”

Após mais de três anos de testes, Conde não tem dúvidas de que o projecto do AC75 foi “extremamente bem-sucedido”, mas há o “lado negativo, que é o custo” – o orçamento da Team UK ultrapassou os 200 milhões de euros. “Mais equipas podiam suportar o custo [houve apenas três candidatos a challenger: Luna Rossa, Team UK e American Magic], mas a taxa de sucesso era extremamente baixa”.

Para além dos custos associados à contratação de uma equipa repleta de mão-de-obra qualificada – na Team UK eram 174 pessoas -, a maior fatia do orçamento foi consumida no desenvolvimento e potenciação dos AC75. “Um avião para voar tem muitos engenheiros, manutenção assídua, constante e incisiva. A Airbus e a Boeing estiveram directamente envolvidas nesta AC e a complexidade do sistema de voo destes barcos chega a ser 11 vezes mais complexa do que num A380. Um avião voa de forma horizontal e constante. Nestes barcos, os pontos são assimétricos – um foil em contacto com a água de cada vez – e a largura é de cinco metros, com um braço de foil de quatro metros que pesa duas toneladas. É uma amplitude extremamente grande, toda esta força está excêntrica e o vento provoca pressões gigantes. Quando as velas trocam de posição, são exercidas cargas de 15 a 20 toneladas. Numa fracção de dois segundos essa carga passa para o outro lado e o barco não adorna ou oscila”, explica.

Apesar de, há quatro anos, os barcos que competiram na AC serem já complexos, Conde diz que “nas Bermudas era o ser humano que levava o barco, activando os sistemas electrónicos”. Agora, “se existir um problema electrónico, é impossível navegar”. “Todos os sensores e a programação são acompanhados e assistidos por computadores. Nós, seres humanos, não temos capacidade para controlar o barco em tempo real. Daí a complexidade a nível de electrónica e hidráulica. Os únicos cabos que existem são para puxar as velas de cima para baixo e o único que trabalha nas regatas é a escota da genoa, que puxa a vela da frente de um lado para o outro. O resto é tudo movido hidraulicamente.”

Numa competição na qual “as equipas fazem tudo o que é possível e imaginário para esconderem o que têm”, Conde admite que no final “há uma convergência em todos os projectos”, mas lamenta a estratégica dos britânicos, que, mais uma vez, falharam na competição: “Os ingleses estiveram envolvidos na primeira edição há 170 anos e nunca mais lhe puseram a mão. Essa dor, esse peso que carregam, é tão grande que a obrigação que têm em trazer a AC de volta para Inglaterra torna-se numa obsessão.”

Na opinião de Renato Conde, a Team UK “regrediu” durante a qualificação “por mudanças feitas no barco”: “Devíamos partir do princípio de que somos bons o suficiente para não olhar para o lado. Se compararmos o Team New Zealand actual e o nosso barco número um, em linhas gerais, vemos semelhanças. Não acreditamos na equipa que tínhamos e as alterações que fizemos mostram o quanto estávamos inseguros. Fomos atrás deles [neozelandeses] e ele foram atrás de nós. Foi um erro. Devíamos ter sido fiéis a nós próprios.”

Olhando para o futuro, Renato Conde não tem dúvidas em apontar os neozelandeses como favoritos a vencerem a 36.ª AC – “Têm sempre uma eficácia grande de execução. Por terem os orçamentos mais baixos, tudo tem que funcionar na perfeição” – e confessa que, “para já”, não está disponível para fazer parte da próxima edição da AC.

“Muitos dos que continuam, fazem-no porque estão viciados. A AC tem uma vertente atractiva, que é a parte financeira, mas isso existe porque não há mais nada: não há família, não há filhos, nada há nada. É só a equipa. Se fizesse as contas às horas, se calhar nem ganhei assim tão bem. Durante sete ou oito meses seguidos, cheguei à nossa base às 6h da manhã e saí à meia-noite. Sem um dia livre. Torna-se numa obsessão porque se está sempre a pensar como se pode evoluir e melhorar. Neste momento, posso estar onde quero e nas equipas onde gosto, tendo tempo para a família. Há a possibilidade de voltar a estar com a Team UK, mas será preciso mudar muita coisa.”

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