Portugueses estão menos comprometidos com o confinamento. Porquê?

A tendência é para um relaxamento do cumprimento das normas de confinamento. O PÚBLICO conversou com quatro especialistas, da área da saúde e das ciências sociais, para perceber o que poderá estar na base do descomprometimento dos portugueses a um segundo “toque de recolher” nacional.

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Rui Gaudêncio

A fadiga pandémica, a normalização da pandemia de covid-19 e uma menor percepção do risco são alguns dos motivos apontados por alguns especialistas para a maior resistência dos portugueses a um segundo confinamento. Segundo os dados da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), há menos 30% de confinamento em Portugal do que em 2020. 

Ao PÚBLICO, a directora da ENSP, Carla Nunes, refere que, neste segundo toque de recolher, os níveis de “todos os indicadores do confinamento estão à volta dos 70%” dos de 2020, ou seja, menos 30% da população que se confinou no ano passado. “Houve, claramente, uma mudança no comportamento dos portugueses”, sustenta. 

A tendência confirmou-se nesta sexta-feira: mais de 59% dos portugueses saíram à rua, um valor apenas 17 pontos percentuais inferior à mobilidade pré-pandemia, segundo os dados da consultora PSE, que tem vindo a medir a mobilidade dos portugueses. No último fim-de-semana quase quatro milhões de portugueses saíram à rua. Os dados reunidos pela PSE mostram também que os portugueses saíram mais à rua em Fevereiro do que em Janeiro, altura em que o segundo confinamento geral foi decretado pelo Governo. É um sinal claro de que o segundo confinamento “está em erosão”, refere a empresa de análise de dados. 

A pergunta impõe-se: o que é provoca esta resistência por parte dos portugueses? Carla Nunes distingue dois momentos. Em Março de 2020, a população reagiu com medo a uma situação ainda desconhecida e, por isso, “não se expunha ao risco”. Um ano volvido e as pessoas já são mais resistentes a confinamentos totais e restritivos. 

Portugueses habituaram-se a viver com o risco

“Por um lado há um cansaço pandémico. Por outro lado, sempre que estamos expostos a um risco mais frequentemente, habituamo-nos (até para a nossa sobrevivência) a lidar com o risco, não podemos viver em situações limite na nossa vida o tempo todo”, explica Carla Nunes.

Para o historiador e professor na Universidade do Porto Manuel Loff houve neste segundo confinamento “uma alteração substancial da percepção da pandemia e do dever de cumprir das instruções do estado de emergência”. Apesar disso, o historiador não considera que os portugueses estejam a resistir às medidas de confinamento, comparando com outros países como Espanha ou Itália cujos movimentos contra as limitações impostas foram muito mais notórios.

“Podemos dizer que há um incumprimento parcial que é muito diferente relativamente ao primeiro caso de confinamento. Aliás, houve uma casualização do estado de emergência da qual resultou o cansaço do mesmo”, explica o historiador. Nesse sentido, pessoas que num primeiro momento reagiram prontamente ao toque de recolher, hoje ficam aliviadas por lhes ser possível sair de casa. 

Em Abril de 2020, Manuel Loff indicava ao PÚBICO que “numa sociedade pouco feliz, o medo avança” como resposta para a prontidão dos portugueses em responder de forma positiva ao confinamento social. Tendo em conta o momento actual, acredita não se ter enganado no primeiro diagnóstico, lembrando que “o cumprimento é agora amplamente maioritário, mas que tem um menor compromisso e empenho dos portugueses”. 

O psiquiatra Vítor Cotovio aponta não só a habituação a situações de risco como um dos motivos para um maior alívio por parte dos portugueses, mas também a fadiga pandémica, a par de outros factores. “Com o segundo confinamento, o ser humano já vai acumulando a tal saturação pandémica, a fadiga pandémica, e aquilo que é o medo mais imediato (que o fez ir para casa num primeiro momento) começa a ser substituído pela angústia existencial pandémica, por uma certa ansiedade”, indica. 

"Olhamos para 200 mortos e parece que já não nos impacta"

Contudo, a tendência, diz, não pode ser explicada apenas por um motivo isolado e é preciso ter em conta diferentes factores. “Houve uma certa vulgarização dos números”, explica. Vítor Cotovio dá um exemplo: “Na primeira vez que vimos duas mortes [associadas à covid-19] foi impactante e agora olhamos para 200 mortos e parece que já não nos impacta da mesma maneira. Isto acontece porque o ser humano se vai fatigando em termos de pandemia e vai vulgarizando os números, vai relativizando.” 

Essa vulgarização pode levar o ser humano a baixar a guarda e, por isso, “cometer erros até nas medidas de protecção e segurança”, aponta Vítor Cotovio. Também Carla Nunes concorda que a normalização conduz a uma menor percepção de risco e à subsequente mudança de comportamentos. 

“Sempre que os números baixam e que a pandemia parece estar mais controlada, passa esta noção de que realmente estamos no bom caminho e as pessoas tendem a ter uma percepção de risco inferior, começando a aligeirar os seus comportamentos”, refere.

Tendência para quebrar as regras

A mudança de comportamentos tem-se pautado por uma crescente mobilidade da população e até pelo incumprimento das normas estabelecidas de combate à pandemia. De acordo com o intendente e porta-voz da Polícia de Segurança Pública (PSP), Nuno Carocha, as autoridades têm registado uma subida no número "de eventos, familiares, de amigos, etc, com um aumento sensível [dos crimes de desobediência] em comparação com a anterior janela temporal de confinamento.”

Nos meses de Janeiro e Fevereiro, a PSP interveio em 34 eventos ilegais. “Podemos constatar que esta janela temporal de confinamento não está a ser encarada da mesma forma da anterior. Ainda assim, convém sublinhar que não há um estado de incumprimento generalizado, embora não estejamos perante uma situação de cumprimento das normas igual à do ano anterior”, avança ainda o porta-voz daquela força de segurança.

Por exemplo, só no último fim-de-semana a PSP passou quase mil multas durante as várias acções de fiscalização específicas das regras de combate à pandemia. Entre as 924 contra-ordenações, 565 foram por não-cumprimento do dever geral de recolhimento, 152 por circulação entre concelhos sem motivo legal plausível, 53 pela não-utilização de máscara, 40 por consumo de álcool na via pública e oito por organização de eventos ilegais.

Confinamento deve ser respeitado

Para a presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologia (APE), Elisabete Ramos, o momento actual é de confinamento e, sendo essa a regra, deve ser respeitada. Mas, se sair de casa for a escolha dos portugueses, apesar de “trazer riscos acrescidos [de contágio], a mobilidade, por si só, não implicaria um aumento excessivo de casos desde que fossem mantidas todas as medidas de segurança”, lembra. 

A também investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) acredita que é possível conviver no espaço público com o novo coronavírus. Aliás, “vamos ter que aprender a fazer isso, porque vai ser esse o nosso futuro”, refere. “Não é exequível imaginar que estaremos a confinar regularmente.”

É importante manter as medidas básicas de higiene

Elisabete Ramos indica que o facto de os números de novos casos e mortes estarem a descer não significa que se devam descurar as normas básicas de higiene que têm vindo a ser repetidas desde há um ano. “As medidas são simples, são sempre as mesmas e são eficazes: o distanciamento social e a lavagem das mãos funcionam para as diferentes variantes e é essencial que sejam mantidas”, sustenta.

Além disso, apesar de existir agora uma sensação de que a situação pandémica já está controlada, “também no pós primeira vaga partimos de números muito baixos que ao fim de algum tempo voltaram a subir”. Nesse sentido e como admitiu esta quarta-feira a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, e também o epidemiologista Manuel Carmo Gomes esta quinta-feira, não está excluída a possibilidade de uma quarta vaga da pandemia. “Não é preciso ser um especialista para saber que isso é o esperado ou o possível. Evitar uma quarta vaga vai depender essencialmente de conseguirmos viver fora de casa mantendo as regras que nos permitem evitar a infecção”, explica Elisabete Ramos.

Apesar de referir que o desconfinamento é uma decisão política que equaciona diversos factores, “tendo em conta os indicadores da situação pandémica e pensando no número de novos casos” parecem estar reunidas as condições para pensar em desconfinar.

“Aparentemente, e olhando para os números, as pessoas já começaram esse processo independentemente de lhes ter sido dada essa informação”, refere. Contudo, Elisabete Ramos lembra que é preciso separar o desconfinamento da abertura das escolas. “As escolas são um bem essencial que por uma razão extraordinariamente difícil teve que ser fechado e assim que houver a abertura de algum dos níveis de ensino a palavra não pode ser de que ‘começou o desconfinamento’, aí poderá ser difícil controlar a situação”, acrescenta.

A especialista deixa também o alerta: “Pode ser expectável que havendo mais mobilidade, também os casos aumentem. Na verdade, já é visível um decréscimo mais lento no número de casos”. Portanto, diz a epidemiologista, “fazer com que a recta não inverta o sentido e que os novos casos comecem a subir vai depender de como todos nós funcionarmos e conseguirmos, então, viver num espaço com menos restrições. É uma responsabilidade de todos.”

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