Direcção da PSP confirma suspensão de Manuel Morais por chamar “aberração” a Ventura

No despacho de punição conduzido pelo núcleo de deontologia da Unidade Especial de Polícia, e que foi agora confirmado por Magina da Silva, a PSP considerou que o agente violou “deveres funcionais”. Manuel Morais vai recorrer ao ministro da Administração Interna.Na sua página de Facebook o agente escreveu: “Hoje é o dia mais triste da minha carreira policial”. E: “Estou a ser tratado como alguém que incumpriu com aquilo a que está obrigado.”

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Nuno Ferreira Santos

O director-nacional da PSP, Magina da Silva, confirmou a suspensão de dez dias do agente Manuel Morais — conhecido pelo seu anti-racismo — por ter escrito no seu Facebook pessoal que o deputado da extrema-direita André Ventura era uma “aberração” e por afirmar: “Decapitem estes racistas nauseabundos que não merecem a água que bebem.” Ao PÚBLICO o advogado de Manuel Morais disse que vai recorrer ao ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, antes de recorrer ao Tribunal Administrativo, para revogar a decisão.

O recurso não tem efeito suspensivo. Manuel Morais será impedido, a partir do dia seguinte à notificação — ou seja, sábado —, de exercer as suas funções durante dez dias e de aceder ao seu posto de trabalho, tendo que entregar a sua arma. Se a decisão for revogada é-lhe reposto o salário descontado referente aos dez dias de suspensão e os dias voltam a contar para efeitos de antiguidade.

Na sua página de Facebook o agente escreveu: “Hoje é o dia mais triste da minha carreira policial, considerando que dediquei a esta polícia os últimos 30 anos. Sinto, na altura de entregar a arma, pelos 10 dias da minha pena, que a minha dedicação à causa pública foi interpretada pela PSP, a minha organização, como tendo pouco valor e até como sendo dispensável. Durante estes últimos 30 anos fui por várias vezes injustiçado pela forma como sempre encarei a atividade sindical. Mas, com sinceridade nunca me senti, como me sinto neste momento. Estou a ser tratado como alguém que incumpriu com aquilo a que está obrigado, quando eu sei que estou a defender a integridade das forças de segurança Um amigo disse-me: ‘neste momento deves lembrar-te dos teus louvores de serviço’. Não é disso que me lembro, não são esses louvores que tenho presentes. Continuo a respeitar a hierarquia da instituição e continuo a acreditar que no final deste processo será feita justiça. Esta parte não é fácil. Continuo sobretudo a acreditar que o que tenho feito e, que me levou a esta situação, está correto. Esta parte é fácil. Escrevo com o coração e tenho a felicidade de ele me dizer o mesmo que a minha cabeça.”

Os comentários foram feitos num post datado de 14 para 15 de Junho de 2020, que alguém denunciou anonimamente ao gabinete de imprensa da PSP. 

No despacho de punição conduzido pelo núcleo de deontologia da Unidade Especial de Polícia, e que foi agora confirmado por Magina da Silva, a PSP considerou que Manuel Morais violou “deveres funcionais”. A pena podia ir de cinco a 120 dias.

Manuel Morais, um conhecido agente da PSP anti-racista, activista pelos direitos humanos, alega ter proferido as afirmações como cidadão e não como polícia. Não foi esta a primeira vez que os seus comentários contra o racismo lhe trouxeram punições dos seus pares. Depois de 30 anos como dirigente na Associação Sindical de Profissionais de Polícia (ASPP), em 2019, Manuel Morais foi afastado por causa das suas denúncias sobre racismo na PSP.

Ao princípio da noite a PSP informou que entr 2019 e até agora foram concluídos (com decisão de sanção disciplinar), ou encontram-se em instrução, 11 processos disciplinares "por condutas ou comentários públicos considerados discriminatórios e impróprios”. Desses, apenas um cumpriu uma pena de 30 dias de suspensão, outro tem a pena em execução pelo mesmo período e um terceiro, que corresponde a Manuel Morais, está em cumprimento de pena.

A suspensão de Manuel Morais motivou, aliás, a ida da inspectora-geral da Administração Interna (IGAI) Anabela Cabral Ferreira ao Parlamento há cerca de uma semana, a pedido do PCP.  

No processo a que o PÚBLICO teve acesso na altura, Manuel Morais esclareceu à PSP que “em momento algum quis ofender ou decapitar alguém no verdadeiro sentido da palavra”, mas apenas “transmitir que é necessário decapitar as ideias racistas que prejudicam a sociedade em geral”. Manuel Morais justifica que “não se queria referir em concreto à pessoa André Ventura, mas sim a muitas ideias que o mesmo já expressou publicamente”. De resto, o agente refere que apagou a publicação para “não gerar mal-entendidos” e tentou entrar em contacto com André Ventura “para esclarecer que não lhe desejava mal e pedir desculpas caso a sua publicação o tivesse ofendido”, mas não conseguiu. 

Afirmou-se “arrependido da forma como se expressou” e disse que “em momento algum ofendeu o sr. deputado, não lhe desejou a morte nem lhe chamou racista”.  Explicou ainda que quando referiu para “se decapitarem os racistas era no contexto em que várias estátuas estavam a ser vandalizadas”, “tentando mostrar que era errado destruir o nosso património histórico, cortando as cabeças às estátuas, e que seria melhor acabar com o racismo, ou seja, decapitar o racismo”.

Ana Gomes e Rui Pereira: testemunhas abonatórias

Mas o instrutor do processo não aceitou a justificação. Manuel Morais apresentou como testemunhas abonatórias o ex-ministro da Administração Interna Rui Pereira, a candidata à Presidência da República Ana Gomes e o juiz António Colaço, e pôs em causa a decisão da PSP, alegando que violava alguns princípios como a liberdade de expressão, a igualdade e a proporcionalidade.

Ana Gomes defendeu que a publicação se enquadra no princípio da liberdade de expressão e concorda que a “referência ao decapitar é à ideologia e à História e não a pes­soas”; justificou a “linguagem forte” com “o sentimento de muitos ci­dadãos face ao crescimento de muitas vozes que põem em causa a Constituição e a democracia, fomentando o ódio, havendo inacção dos poderes públicos”. Já sobre chamar “aberração” a Ventura, refere ainda que foi usada para referir “algo que foge ao normal, ou seja, um comportamento antidemocrático por um deputado que foi democratica­mente eleito, que deveria actuar em defesa da democracia: no caso, o deputado André Ventura, que sistematicamente diz que quer destruir a Constituição e o sistema de­mocrático”.

Por outro lado, Rui Pereira argumenta igualmente que considera que as palavras foram usadas num sentido figura­do, e refere que “a palavra decapitar, em linguagem política, tem como objectivo cortar uma ideologia, um comportamento”. “Tendo em conta o que conhece do arguido, uma pessoa humanista, nunca seria intenção referir-se ao corte da cabeça de nenhuma pessoa”, diz. O ex-ministro evoca a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para enquadrar as palavras na liberdade de expressão.

A PSP, no processo, considera que não estava em causa o pensamento e ideais de Manuel Morais, mas “a forma como se expressou, numa rede social, na qual se encontra identificado como polícia, sobre um deputado da Assembleia da República”: “Toda a liberdade tem limites e esta liberdade, a de expressão, também tem os seus limites”, afirma. Na decisão, refere que, “mesmo que tenha sido em sentido figurado, não podem os profissionais de polícia ir tão longe nas suas liberdades”. “Publicando comentários depreciativos sobre um deputado da Assembleia da República, consubstancia a violação do dever de prossecução do interesse público”, violando ainda o “dever de aprumo” e o “dever de correcção”.

Notícia actualizada com resposta da PSP e declarações de Manuel Morais na sua página de Facebook

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