A descentralização teatral não é uma sala de visitas
As estruturas locais são as únicas em condições de garantir a sedimentação dos hábitos culturais nas populações. Porque são elas que podem garantir carreiras prolongadas, o alargamento de públicos e a resposta a sectores mais específicos.
A Descentralização (Teatral, ao caso) é pedra de toque da existência de um edifício produtivo cultural verdadeiramente nacional. É-lhe mesmo imprescindível. Não faz muito sentido uma velha questão em que se faz antinómica uma Descentralização alicerçada em estruturas de produção local versus estruturas de produção em digressão. Defendendo a presença das duas coisas, tenho aqui de sublinhar que a existência de estruturas de produção locais é indispensável para cumprir com aspectos fundadores da própria Descentralização. Digo-o para contrapor à tentação de a pensar cumprida com a recepção da produção dos grandes centros a lá ir. O que vem de fora pode realizar 1, 2, 3 representações, mas vai e volta. Só isso nunca logrará alcançar um papel bastante na formação de públicos, muito menos na sua captação.
As estruturas locais são as únicas em condições de garantir a sedimentação dos hábitos culturais nessas populações. Porque são elas que podem garantir carreiras prolongadas, o alargamento de públicos em estratégias de médio e de longo prazo e de dar resposta a sectores mais específicos (como públicos escolares, mas não só). Porque são elas que podem dialogar e ‘institucionalizar’ relações com outras estruturas locais: de Cultura, Desporto, Recreativas, de índole Social. De facto, muito é, muitíssimo, com elas e por elas que se gera massa crítica.
Assim, é positiva a intenção anunciada pela tutela ao considerar, para a chamada Rede Nacional de Teatros e Cineteatros, o dever de se constituírem em espaço para a apresentação das estruturas locais. Mas não basta se se reconduzir isso aos Malefícios de uma política de evento no teatro. Se não se compreende a prioridade da ocupação prolongada, como local de trabalho com carreiras de espectáculos, mais ou menos longas, e de prática recorrente ao longo do ano, esse erro de análise acaba por fazer do próprio acolhimento um factor de agravamento de desigualdades geográficas. É este o ponto por que às estruturas locais importa garantir um uso de carácter residencial nos Teatros Municipais. De Teatro ou de Dança, melhor se de Teatro e de Dança; e se terceira de Música, é oiro sobre azul.
Ora, neste sentido também, é natural – digo: é incontornável – que as estruturas com um razoável património histórico integrem aquilo a que chamei um Eixo Central quando escrevi sobre Modalidades, modelos e avaliações no teatro e, anteriormente, procurei definir como O que é mesmo estruturante no teatro. Exactamente nos mesmos termos, quer no imediato, quer a prazo. Nem menos, nem mais.
A condição da existência de unidades de residência nesse Eixo alicerçará uma Descentralização muitas vezes subalternizada, quer pela tutela, quer pelo próprio sector profissional de Lisboa e Porto. Embora, a médio prazo (ou longo, talvez) se possa pensar numa outra Rede de Produção Nacional que se configure pela totalidade dos concelhos, pelo menos tendencialmente, fazê-lo no imediato seria irrealista. Mas ter isso em vista não me parece, de todo, desajustado. Desajustado, diria eu, será não o pensar e pensar já. Será, inclusive, uma forma de responder ao crescimento de mais e mais profissionais no sector. E ao carácter estratégico que a Cultura vai representar na saída da pandemia, quer no plano económico do ‘consumo’, quer do espaço de saída laboral.
Tal plano pode constituir-se em resposta conjugada com o demais apoio a jovens criadores para inverter A emergência das ilusões e a ilusão das emergências no teatro, até agora feita “à boca cheia” com “mão vazia”, como já o referi. Não no sentido de limitar a esses apoios os Projectos Emergentes. Isso seria uma descriminação pela negativa. Mas, outrossim, numa descriminação pela positiva: oferecendo mais e melhores condições de trabalho. Como aconteceu, mas por iniciativa própria, com A Centelha, formada por jovens saídos da então Escola de Teatro do Conservatório de Lisboa, que se estabeleceram em Viseu no ano de 1976. É um desafio para a Administração Central, mas também para as Autarquias.
No imediato, todavia, impõe-se encontrar medidas que consolidem o que há, abram novas oportunidades e mesmo, entre estas, as que visem as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Exemplo de maior visibilidade, terá sido a instalação, no final da década de 70 do século passado, do então Grupo de Campolide em Almada, no que é hoje a Companhia de Teatro de Almada. Ela foi determinante mesmo na constituição de outros grupos, dada a enorme massa populacional e mais que óbvia necessidade de dar resposta, eficiente e eficazmente, à diversidade de oferta (pela dimensão e natureza da população, diversa).
Mas não só; outras experiências terão sido até mais ousadas em termos de geografia nessa mesma época, como já citado em Viseu. É o caso do Grupo Cena, ido do Porto, dando origem à Companhia de Teatro de Braga; ou o da ida, que em si se frustrou em 4 anos, mas deixou semente, do TEAR para Viana do Castelo, voltando ao Porto com um impacto enorme na própria cidade onde nascera. São experiências a pedir replicação, mas com outro carácter programático e respectivos meios. Até, porque não?, reforçando os apoios e em diálogo com as Autarquias, para incentivar estruturas históricas a fazê-lo. Como aconteceu com O Bando, ao deslocar-se para Palmela; ou o Art’Imagem para a Maia.
Essa coroa urbana fora dos concelhos de Lisboa e Porto é uma extensão destas. Lisboa, hoje, é um ‘conceito’ que também inclui Odivelas, Loures ou Amadora; ou o Porto idem com Gaia, Matosinhos, Gondomar. Mas a esse ‘conceito’ falta, em alguns aspectos na vertente cultural, uma resposta local enraizada, continuada, de substracto profissional. Não será disparatado, convocar a preferência de Patrice Chéreau por Nanterres…
Porém, se no contexto actual e a curto prazo, indo mais além do que apenas isso, pensarmos, por exemplo, numa estrutura na Guarda, outra em Bragança ou outra em Portalegre, é já um bom passo. Não se compreendem mesmo que não existam e quando existiam fossem destruídas. E quando, por exemplo, já houver além de Braga e Guimarães, de idêntica dimensão uma em Barcelos e outra em Vizela, e além de Bragança, uma em Chaves, ou além das Caldas da Rainha, uma na Nazaré e outra na Marinha Grande, teremos dado o salto qualitativo, então imparável no bom caminho.
Esta outra vocação de desígnio nacional representa importância acrescida no reforço da coesão territorial. E nem sequer apenas pelo resultado directo em termos Culturais. A presença de estruturas profissionais residentes em permanência, contribui para a fixação de populações e a própria vida económica local. Não é questão exclusiva da tutela da Cultura. É assunto que não deve ser ignorado pelas Autarquias, nem pelo Ministério da Educação, nem mesmo pelo da Economia. Estas estruturas de produção artística são, também, um instrumento de desconcentração populacional e combate à desertificação do interior. São mesmo um factor de atracção e fixação de populações, como o são uma piscina, uma biblioteca, um ginásio. Além disso, desde a aquisição de bens e serviços no comércio e indústria locais até ao consumo feito pelos próprios elementos delas, a coisa não é propriamente de somenos. Incluindo nisto a manutenção, indirecta, de postos de trabalho, para lá dos que por si gera.
O que seria erro crasso era fazer de tal modo que a Cultura servisse para fracturar (mais ainda) um País macrocéfalo, persistindo em sê-lo, e remeter a ‘Província’ a local de sala de visitas do que vai de Lisboa. Isso é que é verdadeiramente provinciano. Um País territorialmente desigual em que as políticas acentuem essas desigualdades não está, certamente, a cumprir com o primado de uma Democracia Cultural e Social. Uma Rede – de Energia ou de Saúde ou de Teatros e Cineteatros – que o ignore é mais uma teia de equívocos e, neste caso, é transformar a Descentralização num passeio mais ou menos picaresco das outras centralidades.
Não é o que se espera, nem é o que está em linha com a própria Constituição. Mas ainda continua a ser – não por responsabilidade exclusiva da tutela, mas que esta tem de contrariar para inverter a situação – o que abunda. Episódios ininterruptos, como nos concursos da DGArtes, a concentrar meios em Lisboa, não é ‘culpa’ de Lisboa, mas é, certamente, o que se repetirá a partir dos júris ad-hoc. Também em nome da Descentralização, e para a Descentralização por si mesma, é inadiável libertar a máquina de Estado da captura de facção que esses júris representam.