O ano em que o ARN entrou nas bocas do mundo
Nos últimos anos, temos assistido a um boom no conhecimento do ácido ribonucleico, mas com a pandemia começou a fazer parte do vocabulário geral. Que ácido é este? E onde o encontramos no SARS-CoV-2?
Ácido ribonucleico – ARN, na sigla em português, e RNA, na sigla em inglês. Há já muito tempo que estas palavras e siglas entraram no vocabulário dos cientistas. Mas parece que só em 2020, com o despertar da actual pandemia, entraram definitivamente no vocabulário de todos nós. Ora não fosse esse o material genético do SARS-CoV-2 – o vírus que causa a covid-19 – e o ácido nucleico procurado nos testes de diagnóstico de PCR.
Se há quem conhece bem o ácido ribonucleico é Cecília Arraiano. A cientista do Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) da Universidade Nova de Lisboa estuda-o desde os anos 80. Tudo começou quando estava a fazer o seu doutoramento nos Estados Unidos e, desde 1990, lidera um grupo no ITQB que estuda o papel da maturação e degradação do ARN na regulação da expressão génica. A sua ligação a este composto é tanta que na Academia Europeia de Microbiologia já chegaram a chamar-lhe “madame ribonucleases”. As ribonucleases são proteínas que degradam e controlam os níveis do ácido ribonucleico e a grande especialidade do seu laboratório.
Os ARN são moléculas que podem executar ou modificar as instruções que vêm do código genético do ADN (ácido desoxirribonucleico). Para nos elucidar do que se trata exactamente o ARN e qual é a sua função, Cecília Arraiano diz que vai usar a mesma explicação que dá aos seus alunos. E o esclarecimento começa no ADN. “O DNA [ácido desoxirribonucleico na sigla em inglês] é como se fosse o plano do arquitecto para fazer uma casa, sendo que o plano é o material genético”, compara. “Depois, vêm os engenheiros civis, os engenheiros electricistas e os construtores, que vão executar o plano do arquitecto. Quem executa são os RNA.” Esses engenheiros e construtores podem até mudar o plano – tal como nós, humanos, quando construímos casas.
Muitos desses ARN estão envolvidos na produção de proteínas (isto é, a parte estrutural da casa, como os tijolos). “As proteínas podem ser usadas para fazer o esqueleto da casa ou ter algumas funções, mas têm de ser feitas primeiro por esses RNA.” Há ainda outros ARN que não estão envolvidos na produção de proteínas, mas têm uma função reguladora. “É como se esses executores dissessem: ‘Está muito calor hoje e não vamos trabalhar até uma certa hora ou vamos diminuir as horas de trabalho [na construção da casa]’. Andam a regular”, metaforiza a cientista. “Têm uma função muito importante e em certos seres vivos até conseguem arrancar bocadinhos de DNA para dizer: ‘Isto não vai ficar no plano, vamos arrancar’. Os RNA são os executores do património genético. Têm uma importância enormíssima a executar aquilo que vem do DNA.”
Ao longo dos anos, tem-se vindo a destrinçar a importância destes executores. O bioquímico Jacques Monod (1910-1976) sugeriu a existência da molécula de ARN-mensageiro, ou seja, que esses executores podiam codificar uma ou mais proteínas. Depois, há cerca de 20 anos, identificaram-se os ARN-reguladores, que não codificam proteínas. “[O RNA] tem tido um boom enorme”, salienta Cecília Arraiano. E prova disso têm sido os prémios Nobel com o tema ARN. Vejamos alguns deles.
Em 1989, Sidney Altman e Thomas Cech receberam o Nobel da Química por descobrir que os ARN podem fazer reacções químicas sem precisar de proteínas. Esses ARN designam-se de ribozimas. Em 2006, Craig Mello e Andrew Fire foram galardoados com o Nobel da Medicina por descobrirem que ARN que não codifica proteínas pode silenciar a expressão da mensagem de outros ARN, o chamado “ARN de interferência”.
Já em 2009, o Nobel da Química foi para Venkatraman Ramakrishnan, Thomas Steitz (1940-2018) e Ada Yonath pela descoberta da estrutura e função do ribossoma – a máquina molecular que consegue ajudar a fazer as proteínas. Quando o ARN-mensageiro diz qual é o código para as fazer, são os ribossomas que põem em acção a produção de proteínas.
No ano passado, Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna venceram o Nobel da Química pelo desenvolvimento de um método de edição do genoma, o CRISPR/Cas9. Qual a ligação com o ARN? As cientistas descobriram em bactérias um sistema para combater vírus em que se usam pequenos ARN não-codificantes para fazer com que uma certa ribonuclease (a Cas9) corte o ADN num determinado sítio. A partir desta aprendizagem, conseguiu-se depois aplicar esse conhecimento na modificação e correcção de genomas de seres superiores. “Veio criar uma revolução baseada no RNA”, nota Cecília Arraiano. As aplicações são inúmeras, desde a agricultura à medicina.
“As novas tecnologias, nomeadamente de sequenciação do RNA e do DNA, vieram revelar que há mais RNA em todos os seres do que se pensava”, acrescenta a cientista. E relembra que antes até se chamava “matéria escura do DNA” a segmentos de ADN que pareciam não ter uma função e que hoje se sabe que produzem múltiplos ARN-reguladores. “A tecnologia ajudou à sua crescente importância e já se sabe que muitos pequenos RNA são específicos de certas doenças e dão para diagnosticar certas doenças.”
O material genético do SARS-CoV-2
E, quando nos referimos ao ARN do SARS-CoV-2, falamos do quê? É o material genético deste coronavírus. Ao contrário de nós ou de outros vírus, o SARS-CoV-2 não tem ADN e o seu ARN está guardado dentro da cápsula do vírus. Quando o coronavírus atraca nas células do hospedeiro, injecta o seu ARN nessas células, que reconhecem o ARN como sendo delas. O vírus consegue assim inserir para dentro das células o seu material genético, que vem com instruções para fazer algumas proteínas. Quando o ARN entra, os ribossomas (as tais máquinas moleculares) traduzem então várias proteínas do vírus, que vão fazer parte de uma nova cápsula do coronavírus ou ser importantes na sua replicação.
Tudo isto acontece a uma escala minúscula. Para se ter uma noção, o vírus de ARN mais pequeno que se conhece é o da hepatite D humana e tem 1,7 quilobases (uma quilobase corresponde a mil “letras”). Os maiores vírus de ARN são os coronavírus, que têm entre 26 e 32 quilobases. O SARS-CoV-2 tem 29,9 quilobases, isto é, tem cerca de 30 mil “letras” (o genoma humano tem três mil milhões de pares de letras).
Para o desenvolvimento de algumas vacinas contra a covid-10 também se jogou com o ARN, mais propriamente com o ARN-mensageiro – a molécula que transfere a informação contida no ADN sobre a produção de proteínas até ao local do seu fabrico nas células. As vacinas da Moderna ou da BioNtech-Pfizer usam essa tecnologia (que já vinha antes a ser desenvolvida) e criaram uma versão sintética de um pedaço do ARN-mensageiro deste coronoavírus. “[Nas vacinas] mandam para dentro das células um RNA que, em vez de produzir o vírus todo, só produz um bocadinho”, descreve Cecília Arraiano, indicando que se tem atacado sobretudo a proteína da espícula, responsável pela entrada do SARS-CoV-2 nas células humanas.
Quanto à eficácia destas vacinas contra as variantes do SARS-CoV-2 que preocupam mais (como as identificadas inicialmente na África do Sul, no Brasil e no Reino Unido), a investigadora realça que “o bocadinho” contra o qual vão as vacinas não tem vindo alterado substancialmente nessas variantes. Para além de irem na vacina o ARN com os bocadinhos do vírus, vão também nas vacinas substâncias adjuvantes que ajudarão na resposta do nosso sistema imunitário.
A ciência no público
Há muito que o ácido ribonucleico entrou na vida de Cecília Arraiano e nos laboratórios de todo o mundo. “Este ano acabou por ficar mais na boca do público”, nota a investigadora. “Devido a esta pandemia que nos toca a todos já todos dizem ‘este vírus de RNA’.” E recorda ainda que, antes, já tinha entrado no vocabulário comum o ADN e, depois, as proteínas. “Só agora, pelas piores razões, veio o RNA.”
Isso já vinha a ser previsto há algum tempo. A cientista recorda até uma selecção feita há quase 20 anos pela revista Science com as descobertas mais promissoras. Em primeiro lugar, ficou a descoberta dos pequenos ARN-reguladores que não produzem proteínas e, em quarto, a sequenciação do genoma humano. “Já se via que ter um atlas é menos importante do que ter o poder de modelar e regular.” Mesmo assim, para Cecília Arraiano, nos últimos tempos, um dos vocábulos que inevitavelmente tem ficado na boca do público também tem sido “vacina”. “Isto mostra a importância da ciência. São os cientistas que nos salvam quando há uma pandemia.”
E olhando para a ciência desenvolvida em Portugal, quais têm sido para si os maiores contributos? Cecília Arraiano destaca alguns trabalhos seleccionados num concurso da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) dedicado à covid-19. Dentro desse conjunto, salienta um projecto para o diagnóstico da covid-19 através da saliva, liderado por Catarina Pimentel, do ITQB. Embora tenha um pouco menos de fiabilidade do que os testes de PCR, este tipo de testes pode ajudar a rastrear casos nas escolas ou aeroportos em pouco tempo. E são mais baratos.
Indica ainda uma investigação sobre como o vírus entrou em Portugal, realizada pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge em colaboração com o Instituto Gulbenkian de Ciência. Ou um trabalho a decorrer no ITQB sobre métodos para perceber melhor como é que o vírus atraca nas células através de modelos computacionais. “Isto é importante para desenhar novas vacinas e para os testes serológicos”, considera.
Depois de nos explicar a importância de um ácido nucleico, Cecília Arraiano, “a madame ribonucleases”, faz questão de deixar uma mensagem que considera fulcral: “O mais importante para o avanço da nossa sociedade é que a ciência esteja no público em geral. Só assim o público pode fazer pressão sobre os políticos para que a ciência avance.” O ano de 2020 terá sido aquele em que, finalmente, o ARN entrou nas bocas do mundo.