O meu nome é Paolo Gorgoni, mas muitos conhecem-me melhor pelo nome de Paula Lovely, a que sempre respondo com prazer, principalmente quando me sinto a mais fabulosa das criaturas existentes. Vivo em Lisboa desde 2015 e estou activamente envolvido na área do VIH e da saúde sexual. Em 2010, descobri que tinha VIH e, embora não tenha sido propriamente uma jornada fácil, nestes 11 anos com o vírus tenho feito tudo ao meu alcance para combater o estigma a ele associado e para garantir que nós, as pessoas que vivem com VIH, tivéssemos um espaço no debate público, nas mesas das decisões, na narrativa colectiva sobre a epidemia, na comunicação social que nos retratou, por muito tempo, como corpos infectados, águas-vivas intocáveis.
Sabe-se que é difícil falar adequadamente do que não se conhece, do que não tem nome, do que se acredita viver em universos paralelos. É difícil contar histórias credíveis sobre vidas que se desenrolam na escuridão e no silêncio. No entanto, agora que todos somos forçados a preocuparmo-nos com outro vírus, a experiência das comunidades envolvidas numa epidemia que dura há 40 anos pode ajudar a entender muitas coisas. Talvez seja a nossa hora de falar, mais alto e mais claro do que nunca. O VIH é um vírus que está principalmente associado ao sexo e ao consumo de drogas, razão pela qual continua a ser um tabu nas nossas sociedades “altamente evoluídas”. Quando se quer abordar este tema, é logo chamado o infecciologista, o luminar, o profissional de saúde que trabalha na área. E ainda melhor se for (percepcionado como) seronegativo, branco e homem, possivelmente heterossexual, só para não errar. Nessa narrativa, os nossos corpos e as nossas histórias nunca estão presentes, a não ser que se prestem a vitimizações fáceis que apagam a sua dignidade e os seus afectos com um golpe de esponja, tornando-os matéria dramática.
Pergunte-se: Quantos filmes eu vi sobre o VIH? Quais? Em que anos se desenrolam essas histórias?
É fácil reparar que não se quer ouvir muito sobre as vidas com VIH depois do final dos anos 90. Pois! É tão aborrecido e pouco interessante dizer que, com tratamento eficaz, não se morre por causa do VIH! Na verdade, ainda hoje praticamente nada se sabe sobre o que significa viver com VIH: continuam a vir-nos à memória as lesões na pele do sarcoma de Kaposi, as pneumonias fatais, os corpos esqueléticos em camas transformadas em leitos de morte. Assim as lágrimas estão garantidas; neste negócio o que vende mais é o sofrimento. Não se cultiva a memória desses tempos difíceis só porque ela é importante, ou para não reiterar os erros do passado, mas principalmente porque não se sabe ou não se quer contar algo diferente.
Porém, quando alguns de nós levantam a cabeça e falam, há quem não goste: a nossa visibilidade enquanto portadores de VIH é um acto que gera um certo incómodo. Por isso são mantidos sistemas em que a comunicação aberta do estatuto serológico nos expõe a um mar de perigos, desvantagens e consequências horríveis. No fundo, há poucas pessoas para silenciar, porque poucas são as que podem ou querem correr os riscos associados à visibilidade. A manutenção do estigma responde à mesma dinâmica de salvaguarda das desigualdades socioeconómicas e de género operada pelas sociedades racistas, “homolesbobitransfóbicas” e sexistas em que fomos criados.
No entanto, mesmo nos meios mais progressistas, há sempre a necessidade de manter uma boa imagem pública e um número adequado de seguidores: se eu for um artista famoso e seronegativo, ao mostrar publicamente a minha sensibilidade relativamente ao VIH, apropriando-me e trabalhando no tema, terei uma grande simpatia do público, mas não estarei exposto ao estigma das pessoas de quem falo. Se, por outro lado, sou um artista seropositivo e uso a minha história na minha comunicação pública, perderei muitas oportunidades de emprego, pensarão que não sei falar de outra coisa, jamais poderei separar o meu nome deste tema e ser reconhecido por outros méritos – incluindo os profissionais. Na verdade, artistas seropositivos podem ser convidados, mas principalmente a falar sobre o VIH, possivelmente de uma forma não artística, de modo a reduzir toda a sua existência ao que parece caracterizá-la: a infecção. O seu ponto de vista sobre outros aspectos da experiência humana não interessa, a sua resiliência não interessa, a sua alegria ou o seu orgulho não interessam. O público quer doença, sofrimento, autopiedade e vitimização, porque tudo isso confirma o que ele quer ouvir: foste melhor do que nós, porque não apanhaste o vírus.
Enquanto este for o único filtro através do qual olhamos para as existências seropositivas, não há como encontrar elementos narrativos que não reforcem o estigma e a discriminação, mesmo que com boas intenções e com um pietismo morno e monótono de colégio católico. Não haverá campanha que nos tire de cima certos estereótipos, se continuarmos a ser narrados por outros. Devemos unir-nos e falar a uma só voz, de uma vez por todas: temos de devolver as faces reais da epidemia do VIH ao mundo contemporâneo. Por este e muitos outros motivos, hoje e sempre estaremos na rua, nos media, na cultura, nas artes e na política para fazer ouvir a nossa voz e mostrar orgulhosamente os nossos corpos com toda a sua integridade. Se as pessoas seronegativas estão realmente preocupadas com a nossa dignidade e o nosso direito a sermos felizes, não nos escondam com os seus corpos, não nos cubram com as suas vozes, não nos apaguem com os seus textos: tragam as suas câmaras, os seus microfones, os seus gravadores, os seus ouvidos. E fotografem, filmem, entrevistem, gravem, conversem. Façam com que a história que estamos a fazer hoje transforme a sociedade contemporânea num lugar mais inclusivo, representativo e justo, também para quem, como nós, vive com VIH e não quer mais ter vergonha em dizê-lo.