Bazuca chega no Verão. Mas terá poder de fogo?
Governo concentrado em pôr a ajuda europeia no terreno. Se futuro for “mais severo”, estados-membros podem ter de discutir montante da resposta à crise.
Portugal espera receber no Verão deste ano a primeira parcela dos quase 14 mil milhões de euros da resposta europeia à crise económica e social aberta pela pandemia. A ajuda, que faz parte do pacote global de 750 mil milhões de euros, foi classificada pelo primeiro-ministro como uma bazuca. Mas isto foi num primeiro momento. António Costa chama-lhe agora uma vitamina. Será que perdeu poder de fogo?
A dúvida sobre a força da resposta europeia para as necessidades que a crise económica e social exibe foi colocada em cima da mesa por Marcelo Rebelo de Sousa durante a campanha para as eleições presidenciais. “A bazuca foi pensada para quando se acreditava que a pandemia acabava em Outubro passado”, disse o chefe de Estado a 19 de Janeiro deste ano. Na altura, a Europa atravessava uma terceira vaga da crise sanitária, deparava-se com atrasos nas vacinas, e em Portugal dava-se início a um novo confinamento geral. “Já era preciso outra, mas onde é que se vai buscar o dinheiro?”
A pergunta ficou no ar e ninguém lhe pegou. Pelo menos de forma directa. No dia em que, no Parlamento Europeu, assinou o acto legislativo que formaliza o novo Mecanismo de Recuperação e Resiliência, António Costa chamou-lhe a “vitamina” da recuperação. Mas nada mais.
Em Lisboa, o Governo concentra-se nos passos necessários para que a resposta europeia veja a luz do dia. “Estou certa que essa avaliação de quais são os valores e os pacotes necessários vai sempre ser feita pelos diferentes estados-membros à medida que a pandemia e os seus impactos na economia evoluem”, disse a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, em declarações ao PÚBLICO.
A governante, que coordena uma parte relevante do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), dedicada às vulnerabilidades, põe a tónica no caminho já feito. “Não podemos desvalorizar um passo muito significativo” dado pela Europa, nem o impacto que já hoje estas medidas têm tido na nossa economia, por exemplo, através das verbas do SURE (um programa criado para o apoio ao emprego), argumenta. “Quanto ao resto cá estaremos para discutir o futuro. Se ele for mais ou menos severo do que pensávamos”, disse Mariana Vieira da Silva.
Sobre o futuro, Margarida Marques, eurodeputada pelo Partido Socialista, vai mais longe na análise: “Não é impossível que seja necessário ter outro reforço de financiamento'’. No entanto, explica por que razão por agora é preferível não alimentar essa discussão. “O importante é que o princípio seja aprovado. Se for aprovado teremos mais margem de manobra para alargar ou repetir o fundo”, afirmou ao PÚBLICO. Embora admita que possa ser necessário um pacote mais robusto face à evolução da crise - a líder do Fundo Monetário Internacional (FMI) disse recentemente que 2021 pode ser o ano da “grande divergência” - a eurodeputada salienta que falar dessa necessidade agora “cria mais ruído. O não ruído é inteligente”.
José Manuel Fernandes, eurodeputado eleito pelo PSD, põe a tónica na comparação com a execução de outros programas quando analisa o pacote de verbas a que Portugal vai ter acesso através da ajuda europeia (aos cerca de 14 mil milhões de euros em subvenções juntam-se quase 2,7 mil milhões de euros em empréstimos). “Olhando para a execução dos fundos quase dizia que Portugal não precisava de tanto. Como o Governo explica que não utiliza os 10,5 mil milhões de euros ainda por gastar no PT2020?”, pergunta o eurodeputado que teme que Portugal corra o “risco de perder dinheiro”.
José Manuel Fernandes explica que não há razões para que não se use aquela verba até porque a partir de Julho os projectos podem ser financiados a 100% por este programa (sem necessidade de contrapartida nacional do Orçamento do Estado) e, além disso, foram criadas regras que dão flexibilidade à utilização do dinheiro entre projectos.
Mas o executivo está “confortável” com o grau de execução do PT2020, contrapõe Mariana Vieira da Silva. Uma confiança reforçada pelo facto de, em Janeiro, Portugal ter apresentado uma taxa de execução (que mede os pagamentos intermédios da União Europeia em relação ao orçamento total) de 55,6% - a mais elevada entre os países com orçamentos acima de 7 mil milhões de euros e 5,8 pontos percentuais acima da taxa de execução da média europeia, segundo dados do executivo.
O que falta para o dinheiro chegar
Na Europa, o debate centra-se agora na necessidade de pôr no terreno o mais rápido possível a ajuda europeia. Recentemente, o comissário com a pasta do orçamento europeu pediu uma resposta “forte e conjunta” para uma UE onde se esperam ritmos de recuperação diferenciados. E a próxima etapa passa pela ratificação por parte de todos os estados-membros da decisão sobre recursos próprios. Ou seja, cada um dos 27 países tem de confirmar o acordo que permite à Comissão Europeia ir aos mercados financeiros levantar dinheiro para ajudar os países - uma solução inovadora nomeadamente face à crise anterior e que os eurodeputados acreditam que não será ameaçada pela recente agitação nos mercados. “Esta é a vantagem de ser uma garantia partilhada com nota máxima”, argumenta José Manuel Fernandes.
Até agora só sete países ratificaram a decisão: Bulgária, França, Croácia, Chipre, Malta, Portugal e Eslovénia. Margarida Marques destaca que a demora resulta de questões procedimentais dos parlamentos nacionais (o alemão está em obras e o holandês prestes a fechar devido à dissolução do Governo e às eleições de Abril). José Manuel Fernandes lembra também o caso da Finlândia que estava ainda a decidir se a ratificação teria de ser feita através de uma maioria de dois terços.
“Riscos existem sempre, mas não parece que vá acontecer. Todos precisam deste dinheiro”, diz Margarida Marques, adiantando que o executivo comunitário acredita que em Março os vários processos de ratificação estarão concluídos. José Manuel Fernandes mostra-se mais crítico: “É inaceitável que haja este atraso porque é contra os próprios estados-membros”.
Nelson de Souza, o ministro do Planeamento, que em Lisboa tem a coordenação do plano português de ajuda (o PRR), trabalha com o seguinte calendário: depois da actual fase de audição pública que termina esta segunda-feira para receber contributos para o plano, o Governo quer entregar o PRR à Comissão na primeira quinzena de Março para que seja aprovado pela Comissão e pelo Conselho até ao final de Abril.
Todos os países têm também que entregar os seus planos nacionais. O objectivo é que o primeiro pagamento chegue a Portugal até ao final de Junho, disse o governante na semana passada na Assembleia da República. No entanto, há aqui uma fase intermédia que passa pela negociação com a Comissão Europeia das metas e marcos intermédios para cada medida, projecto ou reforma, sem o cumprimento das quais não há pagamentos. O executivo espera que esta fase esteja concluída o mais tardar em Maio.
Se tudo correr como o previsto, a partir de Junho e já com os primeiros pagamentos, o Governo pode começar a lançar os concursos para pôr os projectos a andar. Com carta branca para gastar? Em 2021, a cláusula de escape que permite um défice acima do tecto dos 3% do PIB ainda está activa. No ano seguinte, ainda não é certo. Lisboa quer o prolongamento desta ajuda pelo lado das regras e esta extensão é vista como lógica do ponto de vista da execução das verbas da ajuda europeia. “Seria impossível aos estados-membros usarem o financiamento da bazuca se a cláusula de escape estiver desactivada”, diz Margarida Marques que pede “novas regras” para o momento em que esta suspensão das actuais deixar de existir.