Jamal Khashoggi: não deixar ninguém impune

Agora que as conclusões oficiais do relatório da CIA são claras, não tomar medidas decisivas contra o príncipe herdeiro e a Arábia Saudita seria imoral. Isso só iria privar Jamal Khashoggi e a sua família do direito à justiça.

Em 2018, Jamal Khashoggi, colunista do diário The Washington Post, dirigiu-se ao consulado saudita em Istambul para recolher os documentos de que precisava para o seu casamento. Nunca chegou a sair dali. Dentro do consulado, havia um grupo de pessoas à sua espera para o assassinar com as ferramentas necessárias para garantir que o seu corpo nunca mais fosse visto. Tratou-se de uma tentativa de fazer desaparecer um crítico, com o objectivo de que fosse simplesmente esquecido. Essa estratégia parece ter funcionado durante mais de dois anos, uma vez que o príncipe herdeiro saudita, profusamente considerado responsável pelo assassínio, escapou a qualquer forma significativa de responsabilização.

Porém, esta semana tivemos um prenúncio que poderá resultar na responsabilização do príncipe herdeiro, quando a Administração Biden divulgou um relatório da CIA não confidencial sobre o assassinato de Khashoggi. Esta é a primeira confirmação oficial do governo dos EUA sobre o papel do príncipe no homicídio. Durante mais de dois anos, a Administração Trump frustrou os nossos esforços em tribunal para assegurar a divulgação de registos que revelassem essas informações, incluindo este mesmo relatório.

A divulgação do relatório é o primeiro passo para estabelecer a responsabilidade e impedir que o príncipe herdeiro saia totalmente impune do assassínio. Mas a estas revelações têm de suceder acções decisivas. Durante demasiado tempo, os EUA, a UE e o Reino Unido condenaram o assassinato de Khashoggi enquanto, na verdade, fizeram vista grossa ao homicídio. Com provas mais sólidas, é agora necessário que haja consequências para um crime tão significativo. É por isso que a minha organização apela à UE e a outros países em todo o mundo que acabem com as exportações de armas para a Arábia Saudita e imponham sanções financeiras e de viagens ao príncipe herdeiro e a todos os outros responsáveis pelo assassínio. Não levar a cabo estas acções seria inconsciente.

Acabar com todas as exportações de armas para a Arábia Saudita enviaria uma mensagem clara de que as violações dos direitos humanos deixariam de ser ignoradas no interesse de contratos de armamento multibilionários. Essa realidade era algo de que o ex-presidente Donald Trump se vangloriava de bom grado. No mês passado, a Administração Biden suspendeu temporariamente as vendas de armas à Arábia Saudita, mas é necessário ir mais longe e fazer com que a proibição permaneça enquanto a Arábia Saudita continuar a envolver-se num padrão consistente de violações graves dos direitos humanos. O fim das exportações de armas não só enviaria uma forte mensagem sobre o assassinato de Khashoggi, como poria fim à cumplicidade ocidental – os EUA, o Reino Unido e França são os três principais exportadores de armas para a Arábia Saudita – noutra área onde a Arábia Saudita viola os direitos humanos e o direito humanitário internacional: o bombardeamento de alvos civis no vizinho Iémen.

As sanções financeiras e de viagem específicas tornam as consequências pessoais e não apenas abstractas. Tal como acontece com as sanções contra funcionários russos, o príncipe herdeiro e os seus sequazes devem ser alvo de congelamentos de bens e proibições de viagem. Não há razão para que o príncipe herdeiro possa visitar o seu castelo francês de 250 milhões de euros enquanto o crime que ele orquestrou ficar impune. Aqueles que cumpriram as suas ordens e que até agora não foram sancionados devem também sentir essa pressão e saber que as coisas deixaram de ser iguais para eles.

A divulgação de mais informações oficiais do governo norte-americano sobre o homicídio de Khashoggi ajudaria a garantir que ele não fosse esquecido e a proteger contra a repetição de tais crimes. O relatório divulgado esta semana não foi o único registo que a Administração Trump nos ocultou no nosso litígio. Um relatório da CIA amplamente citado nos meios de comunicação social, mas não divulgado de forma oficial, concluiu com “confiança média a alta” que o príncipe herdeiro ordenou o assassinato de Khashoggi. Em tribunal, a Administração Trump recusou-se mesmo a admitir que tinha o relatório. No entanto, a recente decisão do tribunal exige que o governo dos EUA identifique o relatório e explique a base legal para ter sido ocultado do público. Hatice Cengiz, noiva de Khashoggi, apelou a Joe Biden para romper com o passado e divulgá-lo

A divulgação de novos documentos e a tomada de medidas decisivas contra o governo saudita e o príncipe herdeiro lançaram as bases para novas medidas de responsabilização. A confirmação oficial é crucial para estabelecer a responsabilização pública e legal e a tomada de medidas mostra que o impulso para a responsabilização não será deixado a apelos vagos manifestando “preocupação”.

Embora possam continuar a sair dos EUA documentos mais recentes, nenhuma acção será eficaz a menos que apoiada pela comunidade internacional. Cabe aos governos empenhados na liberdade de expressão e nos valores democráticos zelar para que o percurso para a responsabilização se realize. Sobretudo agora que as conclusões oficiais do relatório são claras para todos verem, não tomar medidas decisivas contra o príncipe herdeiro e a Arábia Saudita seria imoral. Isso só iria privar Jamal Khashoggi e a sua família do direito à justiça. E abriria o precedente para que a Arábia Saudita e outros governos autoritários continuassem a assassinar e perseguir impunemente os dissidentes.

Amrit Singh é advogada da Open Society Justice Initiative e milita na Open Society Justice Initiative v. Office of the Director of National Intelligence, uma ação judicial no âmbito da Lei da Liberdade de Informação (FOIA – Freedom of Information Act), para divulgação dos registos do governo dos EUA sobre o homicídio de Jamal Khashoggi

Tradução de Nelson Filipe

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