Quebrar patentes para ter vacinas contra a covid-19 no Brasil? Um caminho difícil

É um problema político e económico, mas também de capacidade da indústria e da ciência brasileira. Um país com mais de 200 milhões de habitantes definha sem ter quase acesso a vacinas e procura ideias para lutar contra o novo coronavírus.

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Vacinação de um trabalhador do sector da saúde em Brasília Joédson Alves/Lusa

Para conseguir uma vacina contra a covid-19 no Brasil é preciso ter muita sorte, não basta fazer parte de um grupo prioritário. “Praticamente parou a vacinação, dizem que vão chegar vacinas e não chegam. Numa população de 214 milhões de pessoas, só 3% está vacinada”, disse ao PÚBLICO o senador do Partido dos Trabalhadores (PT) Paulo Paim, que apresentou no Senado uma proposta de projecto de lei para suspender as patentes das farmacêuticas, para que alguma das vacinas seja fabricada em quantidade no Brasil.

Outra proposta no mesmo sentido foi apresentada na Câmara dos Deputados, pelo deputado Heitor Freire, do Partido Social Liberal (PSL, a formação pela qual foi eleito o Presidente Jair Bolsonaro). “Aqui no Brasil a iniciativa do projecto de lei pode ser da Câmara ou Senado. Conversei com o deputado e combinámos: se o meu projecto for aprovado, ele defende-o na Câmara. Se o dele for aprovado, eu defendê-lo-ei no Senado. Mas até ao momento, o projecto não andou”, explicou Paulo Paim, senador do Rio Grande do Sul. “O tema de quebrar patentes é, eu diria, complexo”, reconhece.

“É por isso que isso que acho que vai precisar de muito debate”, diz Paulo Paim. “O ideal era fazer uma audiência pública, que eu defendo muito, chamar os especialistas ao Congresso, para explicitar a importância de quebrar as patentes”, defende o senador. Ir além das campanhas que correm na Internet – há algumas internacionais, que já contam com a assinatura de vários ex-ministros da Saúde do Brasil e figuras ligadas aos direitos humanos, como os ex-ministros José Gomes Temporão ou Alexandre Padilha, e vários cientistas e intelectuais franceses, sobretudo (No profit on pandemic.eu é o nome da campanha).

O Brasil está no pico da pandemia de covid-19, atingiu na sexta-feira 250 mil mortos. Regista mais de mil mortes diárias. E, apesar de ter recebido ensaios clínicos de várias vacinas aprovadas ou em vias de aprovação – como as da Pfizer-BioNTech, da AstraZeneca ou da Johnson & Johnson –, o Governo não fez acordos para abastecer o país devidamente. Há pelo menos duas variantes do novo coronavírus que surgiram no Brasil e causam preocupação, e que com a falta de vacinação têm mais oportunidades de se disseminar.

Teria pés para andar esta ideia de o Brasil quebrar as patentes da indústria farmacêutica para produzir localmente vacinas para a sua população?

“Tecnicamente devia-se falar num licenciamento compulsório de vacinas, isto é, uma aplicação da flexibilidade do Acordo TRIP, um tratado internacional sobre propriedade industrial que permite esse licenciamento em circunstâncias de emergência sanitária, como a que estamos vivendo”, explica Reinaldo Guimarães, professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Mas a actual composição política do Congresso brasileiro é muito conservadora, extremamente resistente a qualquer tipo de autonomia do país em questões tecnológicas, de inovação”, disse ao PÚBLICO.

“Hoje em dia, as multinacionais farmacêuticas têm muito menos empatia com as pessoas que consomem os seus produtos e muito mais com os seus investidores, que não têm nada a ver com saúde, pensam em ficar bilionários. Acho extremamente importante que existam propostas – como as que estão neste momento no Congresso brasileiro –, mas vejo com dificuldade que possam prosperar.”

Mas se avançasse a quebra de patentes, o Brasil seria capaz de produzir as vacinas contra a covid-19? “Sem dúvida nenhuma. Temos três, quatro, grandes laboratórios, como a Fundação Oswaldo Cruz, e o Instituto Butantan, que têm todas as condições de produzir a vacina, se for quebrada a patente e for dado todo o investimento necessário”, afirma o senador Paulo Paim.

Embora nada lhe agradasse mais, Reinaldo Guimarães duvida. “Além da Pfizer, da BioNtech e da Moderna, que detêm as patentes das duas vacinas de RNA-mensageiro aprovadas, ninguém mais as sabe fazer”, sublinha. “Essa é uma tecnologia inovadora”, diz tocando num ponto nevrálgico: não basta transmitir a receita, é preciso transmitir o know-how, por vezes o equipamento, para produzir os produtos mais modernos da indústria – como sublinharam os administradores das grandes farmacêuticas numa audição no Parlamento Europeu esta semana, em que revelaram opor-se a transferências tecnológicas para que as suas vacinas sejam produzidas em mais locais.

Chegámos a um nó difícil de desatar. A procura ultrapassou em muito oferta. “Enquanto durar o desequilíbrio entre oferta e demanda, essas medidas, licenciamento compulsório ou acordo com as empresas, não terão o alcance que esperamos delas”, diz Reinaldo Guimarães.

O Brasil está a tentar desatar esse nó com decisões do Supremo Tribunal Federal que autorizam estados e municípios a comprar vacinas para os seus cidadãos, sem esperarem pelo Estado central. “A Bahia quer comprar, o Paraná quer comprar, Minas Gerais quer comprar – porque está todo o mundo apavorado. Se todos esses estados conseguirem comprar, poderá sobrar vacina da União [o Brasil] para distribuir pelos mais pobres”, diz o senador Paulo Paim.

Mas com um cenário de escassez de vacinas em todo o mundo, conseguirá o Brasil ter vacinas suficientes em breve? “Pois, isso é real…”, diz Paulo Paim. “Sabemos que mesmo com essa boa vontade dos estados, não há vacina. Quem se preveniu, o que o Brasil não fez, comprou milhões e milhões de doses e tem stock. Essa foi a falha do Brasil. Ficou negando a pandemia de covid-19, não comprou a vacina, enquanto outros países se foram adiantando. O Chile, por exemplo, praticamente vizinho nosso, já vacinou quase 15% da população. Nós estamos nos 3%.”

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