A Praça do Império (da demagogia)
A abertura da Caixa de Pandora pela demagogia de iconoclastas e órfãos de símbolos poderá causar consequências imprevisíveis. Depois da aceitação da vandalização de estátuas por uns, há agora responsáveis políticos a propor a demolição do Padrão dos Descobrimentos. Em Democracia, a Demagogia, por mais delirante que seja, apenas deverá ser combatida com Cultura e Educação.
Para entender minimamente as obras projectadas para a Praça do Império, em Lisboa, e a contestação que as envolve, importa resumir primeiramente o percurso histórico deste espaço. A Praça do Império foi projectada numa linguagem nacionalista pelo Arquitecto Cottinelli Telmo (1897-1948) e construída em 1940 em frente ao Mosteiro de Santa Maria de Belém (vulgo Mosteiro dos Jerónimos), por ocasião da Exposição do Mundo Português. No âmbito da XI Exposição Nacional de Floricultura, ocorrida em 1961, foram acrescentados brasões (com as armas dos distritos e das então províncias ultramarinas) e símbolos nacionais (esfera armilar, insígnias das antigas Ordens Militares de Nosso Senhor Jesus Cristo, de São Bento de Avis e de Sant’Iago da Espada e outros), executados com flores ornamentais e sebes, aos canteiros que rodeiam a fonte luminosa que centra a praça. Estes brasões e símbolos florais foram conservados ao longo de anos, tendo depois sido deixados ao abandono. Enquanto os símbolos ainda mantêm alguma leitura, os brasões já não tanto. Fundamentada umas vezes por questões políticas e outras por razões económicas, a Câmara Municipal de Lisboa pretende remover os brasões e símbolos da praça, tendo originado uma acesa contestação pública e muita demagogia desde o início do processo (2016). Num concurso de ideias, o projecto da Arquitecta Paisagista Cristina Castel-Branco foi o vencedor.
Contudo, importa abordar esta questão em termos técnicos, o que não tem acontecido. A primeira questão basilar a discutir sobre este tema é a possibilidade de um jardim integrar o Património Cultural. Segundo a Carta de Florença – Sobre a Salvaguarda de Jardins Históricos (ICOMOS, 1982), que devia ser do conhecimento de todos os arquitectos paisagistas, “um jardim histórico é uma composição arquitectónica e hortícola com interesse para o público pelo seu ponto de vista histórico ou artístico. Como tal, deve ser considerado como sendo um monumento” (Artigo 1.º). Não restam dúvidas. O jardim da Praça do Império pode ser considerado um monumento de pleno direito, devendo mesmo ser encarado exclusivamente como tal. Na verdade, os valores reconhecidos num monumento arquitectónico também podem existir num jardim histórico, como se verifica neste caso. Apesar de em Portugal não se entenderem na generalidade os jardins enquanto parte integrante do Património Cultural e, em consequência, não se valorizar a coerência do conjunto, isso já se verifica noutros países europeus há muito tempo e a larga escala.
Outra questão basilar é a filosofia da intervenção a realizar-se, isto é, se se deve seguir uma linha restaurativa, recuando ao projecto de Cottinelli Telmo (1940), ou uma linha conservativa, assumindo os brasões e símbolos acrescentados em 1961.
Depois das intervenções restaurativas do século XIX (e algumas do XX), inspiradas em Violet-Le-Duc (1814-1879), terem originado uma enorme destruição patrimonial por toda a Europa e a construção de falsos históricos, optou-se internacionalmente por uma linha conservativa, muito mais respeitadora do bem cultural como documento histórico. Nasceu assim a Carta de Atenas – Sobre o Restauro de Monumentos (1931), actualizada depois pela Carta de Veneza [Sobre a Conservação e Restauro de Monumentos e Sítios (ICOMOS, 1964)]. A Carta de Florença explicita claramente que “enquanto monumento, o jardim histórico deve ser salvaguardado segundo o espírito da Carta de Veneza” (artigo 3.º).
Esta carta refere no seu início que “a conservação e o restauro dos monumentos visam salvaguardar, quer a obra de arte, quer o testemunho histórico” (artigo 3.º). Mais à frente, desenvolve que “a unidade de estilo não deve constituir um objectivo a alcançar no decurso de um restauro. Pelo contrário, devem ser respeitados os contributos válidos das diferentes fases de construção. Quando um edifício contiver estilos diferentes, em resultado de diversas campanhas de obras ao longo do tempo, não se justifica a remoção de partes do edifício (…)” (artigo 11.º). A própria Carta de Florença resume muito bem este ponto, referindo que “a intervenção de recuperação [de um jardim] deve respeitar a evolução do jardim em questão. Em princípio, não se deve privilegiar uma época em prejuízo das demais (…)” (Artigo 16.º).
Aplicando as directrizes de ambas as cartas no presente caso, os brasões e símbolos do jardim da Praça do Império devem ser conservados, uma vez que constituem um episódio histórico do jardim da Praça do Império. Se as cartas patrimoniais existem e são reconhecidas internacionalmente, devem ser rigorosamente seguidas em todos os casos e não apenas quando convém. A função dos técnicos culturais é precisamente abordar estes temas tecnicamente, sem cederem a tentações políticas.
O projecto de Cristina Castel-Branco não segue uma linha restaurativa nem conservativa, mas sim uma inventiva. Não só desrespeita grosseiramente os princípios basilares das cartas patrimoniais, como acrescenta elementos ferindo a coerência do conjunto. A sua recente proposta de desenhar os brasões e símbolos nacionais na calçada da praça é igualmente inaceitável pelas mesmas razões.
A Praça do Império e o seu jardim devem ser conservados tal como estão, conservando o projecto de Cottinelli Telmo (1940) e restaurando os brasões e símbolos nacionais acrescentados em 1961. Se não houver meios para tal, há que os encontrar.
Os monumentos são marcos da identidade de um país e de uma história conjunta das suas gentes, não podendo por isso ser usados como arremessos políticos circunstanciais em guerras sem princípios e critérios.
Na verdade, as sedes dos mais altos órgãos de soberania nacional e o espaço público estão carregados de símbolos nacionais relacionados com um Passado com pouca equiparação ao Presente. Num país com quase nove séculos, isso é muito natural. Convém lembrar que o ideal nacionalista nasceu nas últimas décadas da Monarquia Constitucional, e atravessou a 1.ª República, a Ditadura Militar e o Estado Novo. Logo, não está exclusivamente ligado a um regime político.
Projectada pelo Arquitecto Ventura Terra (1866-1919) e inaugurada em 1903, ainda na Monarquia Constitucional, a Sala das Sessões da actual Assembleia da República é um excelente exemplo disso mesmo, uma vez que ostenta exactamente os mesmos brasões, pintados depois por Benvindo Ceia (1870-1941) em 1921, já em plena 1.ª República. Se não há artes menores e todas elas fazem parte do Património Cultural, não será coerente remover uns e depois fingir que os outros não existem.
Apesar de vivermos há cento e onze anos em República, os símbolos monárquicos pululam por todos os cantos de Portugal e o seu significado é compreendido.
A abertura da Caixa de Pandora pela demagogia de iconoclastas e órfãos de símbolos poderá causar consequências imprevisíveis. Depois da aceitação da vandalização de estátuas por uns, há agora responsáveis políticos a propor a demolição do Padrão dos Descobrimentos, construído em 1960, segundo o desenho de Cottinelli Telmo e com esculturas de Leopoldo de Almeida (1898–1975). Em Democracia, a Demagogia, por mais delirante que seja, apenas deverá ser combatida com Cultura e Educação.
Apesar de estarem inseridos em zonas de protecção de monumentos classificados, tanto a Praça do Império como o Padrão dos Descobrimentos mereciam ter a sua própria classificação.
A Caixa de Pandora não tinha apenas males, mas também um dom, a Esperança. Tenhamos esperança de que haja bom senso e a Praça do Império seja conservada e o seu jardim restaurado segundo as Cartas Patrimoniais.