Mensagem a uma jovem investigadora recém-doutorada
Nunca te irão dizer a verdade: não podem, com o orçamento e prioridades que têm, apoiar toda a gente cuja formação promoveram, do modo que a promoveram. Mais a mais, se parte desse orçamento for para parcerias específicas e “agendas conjuntas” mal explicadas, em ligação a consórcios internacionais, ou a empresas, ou outras coisas.
Sabes, ia escrever “carta aberta”, mas não me lembro da última vez que escrevi uma carta e, mal ou bem, tudo é “aberto” hoje em dia... Desde já, muitos parabéns pelo teu doutoramento! Correu mesmo bem, publicaste em boas revistas, e agora começas a tua carreira científica independente. Para isso convém concorrer aos concursos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), tutelada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), desde logo o de Emprego Científico Individual, e o dos Projetos de Investigação, o prazo é no fim do mês. É a agência que temos em Portugal, e é sempre um bom treino. Só te queria deixar uns avisos.
Haverá alturas em que te vais chatear, talvez mesmo te revoltes. Faz parte, e só prova que és humana. Não sei porque será exatamente (sou cientista, não oráculo), mas poderá ter a ver com prazos não cumpridos, respostas demoradas (ou inúteis, ou inexistentes), um orçamento insuficiente para a ciência em qualquer país que se queira civilizado, concursos erráticos ou com taxas de aprovação ridículas (ou manipuladas, ou ambas), instruções que mudam, e que parecem ter o único fito de prejudicar quem se devia estar a apoiar, até mesmo ilegalidades (não acredites em mim; és investigadora, confirma tu mesma). A questão é que nunca te irão dizer a verdade, que, no entanto, é simples: não podem, com o orçamento e prioridades que têm, apoiar toda a gente cuja formação promoveram, do modo que a promoveram. Se calhar era importante pensar nisso. Mais a mais, se parte desse orçamento for para parcerias específicas e “agendas conjuntas” mal explicadas nalgumas áreas, em ligação a consórcios internacionais, ou a empresas, ou outras coisas. É a velha questão da manta que não estica em todas as direções.
O que é que eu acho das nossas lideranças em ciência? Sinceramente, para ti (e para elas) a minha opinião é irrelevante. Acho que são, no geral, bem intencionadas. E convictas, embora de convicções por vezes duvidosas. Acho sobretudo que prometem mais do que podem, e que distorcem a realidade de forma até hábil (para quem não conheça a dita realidade), para parecer que deram muito mais do que, na verdade, deram.
Podiam explicar melhor? Podiam, mas assim é mais fácil, até porque as explicações que dão raramente são dirigidas a nós. No lugar deles faria o mesmo? Não faço ideia, espero que não, mas reconheço as dificuldades. Quando mal saía do laboratório também achava as lideranças limitadas. Agora desculpo (muito) mais, porque sei com o que têm de lidar. E reconheço que nós, enquanto investigadores, também por vezes não somos razoáveis. Não que ache que tenhamos sempre de ser! As lideranças poderiam era trazer algumas pessoas novas, aparecem sempre os mesmos nomes, seja qual for a situação política. Ficar muito tempo onde quer que seja leva a que nos confundamos com as estruturas e, pior ainda, nos consideremos imprescindíveis. Não somos; e, se fôssemos, seria muito mau.
Mas não aconselho que te fiques muito pela indignação, apesar de ela ter um papel importante. Porque, na verdade, poucos reclamam. Reclamar a sério, quero dizer, sustentadamente, ao mais alto nível, e em tribunal. Não organizar protestos nas redes sociais ou escrever textos como este, que são tão cíclicos quanto previsíveis. São úteis enquanto catarse, pouco mais. Claro que é compreensível que se reclame pouco, considerando, não só o tempo e o custo, mas o facto de ser difícil desafiar as instituições de quem dependemos, por motivos óbvios.
Já agora, convém perceberes que em Portugal a ética e a integridade científicas têm sido promovidas o mínimo possível pela tutela, até agora apenas formalmente, para podermos ter projetos com verbas internacionais. Por isso, assinam-se acordos e fazem-se regulamentos. Só que depois ninguém cumpre, porque a falta de integridade nunca teve (que eu saiba) consequências por cá. Se o exemplo que vem de cima é este...
Quanto aos investigadores enquanto coletivo não leves a mal se, por muitas ações de solidariedade que façam, mostrarem pouca capacidade de auto organização. Conseguem algumas coisas, como a recuperação do IVA, que não é coisa pouca, mas significa mais para quem lidera instituições científicas, e que também devia estar do teu lado. Mas, lá está, nem sempre pode. Porque não és só tu, sois muitos, e bons. O vosso sucesso até agora é, num certo sentido (e infelizmente), um problema.
Vou-te dizer duas coisas que nunca resolveram nada. Uma é para teres calma (o pior conselho de sempre!), a outra é para te garantir que podia ser pior (outra inutilidade). Se tivesses atividade organizativa fora do laboratório (e devias ter!), por exemplo, em autarquias, organizações, movimentos, partidos ou empresas, saberias que a academia e a ciência são uns meninos e meninas do coro. Ao menos ainda vamos tendo provas e evidências, que não podemos ignorar sem parecermos tontos. Isso não tem nada a ver contigo? Aí é que te enganas, tem sim. Não estamos isolados.
Por último, não te esqueças que foste treinada, não numa torre de marfim (só há disso na cabeça de articulistas preguiçosos), mas numa caixa disciplinar, por mais aberta que fosse. Por isso, não esqueças o teu foco, mas considera espreitar outras coisas, outras caixas, incluindo as que a tutela quer fazer avançar (alguém tem de aproveitar, porque não tu?). Mantém portas abertas, tenta depender da FCT e do MCTES o menos possível, vê outras oportunidades, onde for. Sei que podes não o querer ouvir, mas estás preparada para o mundo.
Eu estarei aqui, para o que precisares, e eu puder. E acho que, apesar do que acabei de dizer, e no meio da incerteza que também tem de fazer parte da ciência, tens tudo para que corra bem. Eu acredito em ti, e em todos nós. Até (sem ironia, nem sebastianismo) nas lideranças que temos, e teremos.
Vai dando notícias.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico