Abrir as escolas com um Rt de 0,98 “ é mais do que imprudência, é quase procurar problemas sérios”

Professor de matemática da Universidade de Lisboa alertou ainda para o descontrolo que pode acontecer se o Rt ficar acima de 1,2: “É quase garantido que poderá haver uma quarta vaga”.

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Daniel Rocha

A abertura das escolas em Setembro fez o risco de transmissibilidade (Rt) subir cerca de 20% a 25% ao final de seis dias, explicou Jorge Buescu, professor de matemática da Universidade de Lisboa, ouvido esta quarta-feira na comissão parlamentar de acompanhamento da pandemia. O especialista alertou ainda para o descontrolo que pode acontecer se o Rt ficar acima de 1,2: “É quase garantido que poderá haver uma quarta vaga”.

“Se queremos ter a noção do efeito de abrir as escolas, é olhar para o que aconteceu ao Rt” em Setembro quando estas abriram, respondeu o especialista aos deputados. “Seis dias depois da abertura das escolas o Rt começou a subir e passados mais 15 dias tinha subido 20 a 25%. Se pensarmos que vai acontecer a mesma coisa, o que temos fazer é uma conta relativamente simples: Estamos com um Rt suficiente para que acrescentando mais 20% continuemos abaixo de 1 ou não?”, explicou Jorge Buescu.

A resposta foi também simples. “Se o Rt antes de abrirmos as escolas estiver 0,98 diria que é mais do que imprudência, é quase procurar problemas sérios, correr um risco muito grande de uma nova vaga”, disse Jorge Buescu, dando como exemplo o que aconteceu por altura do Natal em que o Rt estava neste valor e acabou por subir com o desconfinamento dado nessa altura. E um Rt acima de 1, referiram os quatro matemáticos, é ter “um aumento exponencial de casos”.

“Aquilo que experiência nos tem mostrado é que o Rt é um indicador essencial e deve ser tomado como sinal de alarme imediato a partir do momento que atinge 1.1. Uma lição que podemos tirar para os próximos tempos, se tivermos de começar a desconfinar, é que teremos de fazer um índice de risco. Um Rt de 1,1 é um sinal de grande perigo e acima 1,2 é quase garantido que poderá haver uma quarta vaga”, disse o professor da Universidade de Lisboa.

Explicou ainda que a análise diária do Rt, ainda que menos fina, permite perceber que evolução da incidência se pode esperar ao final de dez a 15 dias. E fazer baixar o Rt leva tempo. Explicou que, com as medidas gradualistas tomadas no início do ano, este indicador levou cerca de mês e meio a descer. Já após o fecho das escolas, o Rt desceu a menos de 1.

Henrique Oliveira, professor de matemática do Instituto Superior Técnico, referiu que nas escolas “grande parte transmissão é feita através de [doentes] assintomáticos ou sintomáticos antes dos sintomas [se manifestarem]” e que esta transmissão é “o grande perigo da doença”. “É muito difícil combater a pandemia por causa dos assintomáticos.”

“Quanto mais jovem, mais se está no estado assintomáticos ou com poucos sintomas. As escolas servem para transmitir a doentes de agregado familiar para agregado familiar”, alertou o especialista, fazendo ainda referência ao desporto escolar que realizado “sem máscara permite maior transmissibilidade”. “Temos de ser cuidado nesta questão. Tem de ser feito ao ar livre e com distância. Em ambiente fechado existe muita transmissão assintomática”, reforçou Henrique Oliveira.

Análise do risco

Já Carlos Antunes, também professor da Universidade de Lisboa e elemento da equipa do epidemiologista Manuel Carmo Gomes, mostrou a análise da incidência que fez por faixas etárias para dizer que no final do ano passado a taxa de incidência dos grupos 6-12 anos e 13-17 anos “crescia na ordem dos 6% ao dia” e que a 22 de Fevereiro eram os grupos que mais desceram na taxa de incidência. Segundo o especialista, houve “uma redução drástica a 31 de Janeiro que tem a ver com algo que aconteceu nos dias 21 a 23”, já que “a transmissibilidade dá-se antes do inicio sintomas”, data pela qual faz a análise.

O especialista falou ainda sobre o modelo de análise de risco que criaram em Outubro e que junta vários indicadores que permitiram estabelecer cinco níveis de risco que podem servir de guia para o início de um confinamento ou desconfinamento. Linhas vermelhas que não devem ultrapassar um Rt de 1,1, uma média de incidência a sete dias de 3000 novos casos, uma taxa de positividade de 7,5% e um limite de 242 camas em cuidados intensivos e de 1300 em enfermaria.

“Aos dados de ontem [terça-feira], a curva média de incidência estava abaixo dos 2000 novos casos, o Rt abaixo de 0,9, a positividade está próxima de 5%. Os internamentos ainda estão distantes do período pré-Natal. Nos cuidados intensivos, só a 8 ou 10 de Março estaremos com valores pré-Natal”, disse Carlos Antunes, que disse ainda haver uma relação entre o rácio de óbitos e os internamentos em cuidados intensivos. “Quanto menos recursos houver em cuidados intensivos, mais a taxa de insucesso vai aumentando. Atingimos as 300 mortes quando tínhamos ultrapassado largamente as 639 camas definidas em Janeiro”.

Também Henrique Oliveira focou esse ponto, ao dar exemplo do que aconteceu na terceira vaga. “As hospitalizações gerais sobem muito, mas os cuidados intensivos não conseguem ir atrás. O número de óbitos dispara não só porque os cuidados intensivos não conseguem tratar bem quando estão no extremo da capacidade, mas porque nem todas as pessoas conseguem entrar nos cuidados intensivos”, explicou, referindo que Portugal é o sexto país da Europa com maior número de óbitos por milhão de habitantes.

“À medida que as unidades de saúde escalaram a resposta, a letalidade começa a descer. É quando se reconvertem enfermarias, se abrem camas e hospitais de campanha”, acrescentou o especialista, que estima que seja preciso 77,8% das pessoas imunizadas para o país ter imunidade de grupo, que será conseguida com a vacinação e com as pessoas que já tiveram a infecção. “Estimo que pode haver quase triplo de casos relativamente aos casos conhecidos”, disse.

Rastreios e testagem

Para João Seixas, também professor do Instituto Superior Técnico, “há um problema essencial que é a testagem e rastreamento”. “Para um rastreamento correcto é preciso fazer o seguimento e ter nexo causal. Um dos graves problemas é que perdemos em determinado momento o nexo causal. Agora que temos menos casos, é mais fácil. Mas chamo a atenção que será preciso colocar em cima de mesa uma forma de rastreamento mais automática. Em alguma altura será impossível, com o número de rastreadores que houver, fazer um rastreamento até ao fim”, alertou.

Em relação à política de testagem, “alguma coisa tem de mudar”, já que a taxa de positividade e o número de casos estão “excessivamente correlacionados”.

Ainda sobre estes dois temas, Carlos Antunes referiu que “a nossa capacidade é decidida em função da proporção que é necessária”. E que a capacidade estabelecida de rastreadores “dá o máximo de 6000 inquéritos epidemiológicos por dia no seu limite”. “Isso era uma capacidade para Novembro. Quando rapidamente entramos num processo exponencial e passamos para 10 mil casos, evidentemente não conseguimos e perdemos o controlo das cadeias de transmissão e do rastreio.”

Quanto à eficácia da testagem, “vai depender da prevalência dentro da amostra”. “Se testar só sobre os suspeitos, a prevalência é 20% a 25%. Se fizer testagem aleatória dentro das escolas, posso fazer 2000 testes mas se a prevalência é 0,8, o que vou encontrar são 0,8 de infectados. Com isso não posso concluir que a escola é segura porque só encontrei estes infectados. Para além desta questão, a maior parte das crianças cujos testes foram feitos, não foram nas escolas. Não é local onde faço o teste que me diz local onde me infecto”, apontou.

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