Do mar ao céu, “foi sempre a fotografia” que moveu Pedro Ré
Angariador de informação do mar e do céu, Pedro Ré tem uma carreira a estudar os oceanos que, através da fotografia, se entrelaça com a sua paixão pela astronomia. A exposição Céu e Mar coloca o público em diálogo com esses dois universos a partir das suas imagens.
“Quando vou para dentro de água, vou sempre com câmaras fotográficas”, diz Pedro Ré. O biólogo marinho, especializado em biologia pesqueira, fala pelo Zoom a partir da sua casa, na região de Santarém. Atrás de si, vê-se parte da extensa colecção de telescópios adquirida ao longo de décadas, que silenciosamente revela a outra grande paixão de Pedro Ré, os astros. Além da biologia marinha, a astronomia é o outro grande foco de dedicação do cientista, que é astrónomo amador há décadas.
Há alguns anos que os dois temas se entrelaçam na exposição Céu e Mar. Apresentada pela primeira vez em 2016 na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), onde Pedro Ré é professor catedrático, essa exposição foi circulando por alguns espaços no país e agora estaria aberta ao público no Observatório do Lago do Alqueva se não fosse a pandemia. Quem a visitou, pôde ver ao todo 54 fotografias do céu e do mar tiradas por Pedro Ré, dispostas aos pares, uma fotografia por cima da outra. A sequência de um eclipse parcial do Sol por cima de uma moreia, a Lua num tom avermelhado por cima de uma espécie de peixe-balão. Há ainda nebulosas, constelações, cometas, corais, anémonas, tartarugas, peixes-palhaços. O céu está sempre em cima, o mar, sempre em baixo. E pelo meio o olhar de Pedro Ré: “É sempre a fotografia, no fundo é sempre a fotografia que une isto tudo.”
Pedro Ré mergulhou pela primeira vez em Sesimbra, quando ainda era estudante de biologia na FCUL, no pós-25 de Abril, durante um curso de mergulho. “A sensação é fantástica, não é igual àquela que sentimos no recife de coral, em que a água é muito transparente, porque não é assim em Sesimbra, mas é uma sensação de imponderabilidade. Se a pessoa estiver à vontade debaixo de água, é como se estivesse a flutuar”, explica o biólogo, que também se recorda do frio. “A água gelada durante uma hora e tal lá de baixo, mesmo com os fatos de mergulho, é complicado.”
Ovos e larvas
O curso de mergulho era dado por Luiz Saldanha, uma figura central no desenvolvimento da biologia marinha no país nos anos seguintes. Saldanha (1937-1997) inaugurou as disciplinas de oceanografia biológica e ictiologia na FCUL, e foi um mestre para Pedro Ré, que começou a trabalhar com o cientista ainda não tinha terminado a licenciatura.
“Lembro-me no início começar a trabalhar com ascídias e com esponjas, estive no Museu de História Natural em Paris, na altura com o professor Luiz Saldanha. Mais tarde, houve um projecto que foi financiado pela UNESCO para o estudo do estuário do Tejo, em que o professor Luiz Saldanha me propôs estudar o ictioplâncton, que era uma coisa que ninguém fazia em Portugal, estudar os ovos e as larvas dos peixes. Agarrei isso com as mãos todas e, no fundo, foi o que fez com que me interessasse mais tarde pelas questões relacionadas com as pescas”, resume o biólogo.
A questão que Pedro Ré tinha em mãos era quais as espécies de peixes que usavam o estuário do Tejo como um local preferencial de postura. Na altura, não se sabia se a sardinha colocava os ovos naquele estuário. Hoje, sabe-se que não. A sardinha faz a postura na plataforma continental ao longo da costa do país, mas não entra no estuário do Tejo. Pelo contrário, o biqueirão, também conhecido como anchova, que é uma espécie de interesse comercial, tem naquele estuário um local preferencial de postura.
“Foi um grande pontapé de saída, acabou por ser uma maneira de contactar com estas áreas, falar com pessoas, envolver-me em projectos de investigação. A partir daí, a minha actividade principal foi estudar a biologia do ictioplâncton e em particular das espécies com interesse económico”, recorda Pedro Ré. Daí para o doutoramento, foi um passo, que terminou em 1984, tornando-se professor associado na FCUL.
O estudo do ictioplâncton é importante para estimar a abundância anual dos mananciais das espécies exploradas na pesca. Todos os anos, nasce uma nova geração de peixes que se junta ao stock já existente. Se, por alguma razão, essa nova geração tiver sido dizimada, por falta de alimento, predação excessiva ou porque as larvas foram arrastadas para um habitat inapropriado, isso vai ter consequências na abundância e ecologia da espécie, e na actividade pesqueira.
“Eu trabalho com pescas de sardinhas, ou aquilo a que chamamos pequenos pelágicos de vida curta. Não é só a sardinha, é o biqueirão, é o carapau. Nesse aspecto, colaboro com investigadores e colegas do IPMA”, avança Pedro Ré, referindo-se ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera. “A questão da sardinha não podia ser mais actual, porque o stock da sardinha está em mínimos históricos nos últimos dez anos e nós temos mesmo de actuar, senão qualquer dia desaparece este manancial. Isso, do ponto de vista económico e social, para Portugal, seria muito complicado.”
Dos microscópios aos telescópios
No início da década de 1980, quando ainda estava a fazer o doutoramento, Pedro Ré começou a estudar os otólitos dos peixes como outro método para analisar as primeiras fases do desenvolvimento daquelas espécies e dar respostas sobre a sua ecologia. Os otólitos são estruturas minerais de carbonato de cálcio que existem no interior dos ouvidos dos vertebrados e ajudam na percepção do movimento. Nos peixes adultos, todos os anos se forma uma camada nova de carbonato de cálcio, tal como os anéis de uma árvore. Mas nas larvas de peixes, esse crescimento do otólito é diário e pode ser estudado com a ajuda do microscópio.
“Os otólitos podem ser vistos como uma espécie de caixa negra. Podemos olhar para os otólitos e perceber se a larva estava em boas condições ou não, se estava a alimentar-se bem, se foi variando as suas taxas de crescimento”, explica. Na altura, o estudo dos otólitos estava no começo. “Fui um pouco um pioneiro, porque havia muito pouca coisa feita.”
Paralelamente ao mar e à investigação da biologia marinha, Pedro Ré ia alimentando a sua paixão pela fotografia astronómica, que começou na adolescência. O pai coleccionava livros de astronomia. De repente, “apareceu um telescópio em casa”, lembra Pedro Ré. “O meu pai nunca o utilizou, tinha o telescópio na sala”, conta. “Encontrei o telescópio, achei graça e trouxe-o aqui para a região de Santarém, onde já havia a casa. O meu pai nunca mais o viu e achava que eu ia estragar aquilo.”
Em 1972, passou a ser assinante da revista norte-americana Sky & Telescope, que trata sobre assuntos da astronomia, e por volta da mesma altura conheceu Joaquim Garcia, que tinha uma oficina de óptica no Planetário de Lisboa. “Disse-lhe que gostava muito disto e que queria construir um espelho” para um telescópio, conta o astrónomo amador. Em 1976, juntamente com Joaquim Garcia e outros apaixonados pelo tema, funda a Associação Portuguesa de Astrónomos Amadores, da qual é hoje o presidente.
“Foi sempre a fotografia”, repete Pedro Ré. “Mesmo esse telescópio, utilizei-o para fotografar” os astros, diz, referindo-se ao telescópio do pai. “No fundo, é isso que une a fotografia do céu, a fotografia debaixo de água e a fotografia ao microscópio. Depois, mais tarde, o processamento digital de imagem, porque na altura tudo era analógico e depois tudo se tornou mais simples quando surgiram as câmaras digitais.”
Documentos científicos
Hoje, tem três observatórios construídos na sua casa de Santarém, dois de tecto de correr e um de cúpula. Todas as noites, costuma fotografar um ou dois objectos, mas durante bastante tempo. Tornou-se um angariador de informação do Universo. As fotografias que faz, quer seja do Sol ou de supernovas, são documentos que envia para organizações internacionais, que as usam para investigação científica. “Tenho-me interessado bastante por projectos Pro-am, ou seja, colaborações entre astrónomos profissionais e astrónomos amadores”, diz.
Cometas e supernovas, fenómenos que são transitórios, são os preferidos de Pedro Ré. Mas também tem fotografado frequentemente o Sol, onde encontra muito movimento. “As protuberâncias solares, os filamentos ou as estruturas que observamos nas manchas solares podem variar muito”, refere. O objectivo é “tentar ir o mais longe possível, fazer as melhores imagens possíveis. No fundo, é um desafio. Quando me perguntam qual é a melhor fotografia que já fiz, digo sempre que é aquela que vou fazer para o mês que vem”.
Qual a diferença de fotografar no mar, fotografar um objecto no microscópio ou fotografar os astros? “A fotografia regista aquilo que pode ser fugaz. Quando estamos debaixo de água e não vemos, a fotografia pode ser interessante”, diz Pedro Ré. “No caso da microscopia ou da astronomia, é totalmente diferente a abordagem. Na microscopia, nós controlamos a luz. Com a astronomia, estamos a registar objectos muito ténues em muitos casos (na Lua e no Sol é diferente), mas nunca controlamos a iluminação.”
As diferenças poderão ser observadas, em parte, na exposição do cientista, que surgiu inicialmente como uma forma de juntar a astronomia com a biologia. Das fotografias expostas, o biólogo e astrónomo amador tem uma recordação especial por uma imagem composta do eclipse total do Sol, que obteve no Egipto, em 2006: “É uma fotografia que não me esqueço. Tivemos de viajar até ao Egipto para ver o eclipse, à procura do bom tempo, que nem sempre acontece.”
Já no mar, as fotografias dos peixes-palhaço, que se protegem entre as anémonas e são mais fáceis de fotografar, estão entre as suas favoritas. Apesar de no início da carreira, o mergulho e a fotografia subaquática terem estado ligados com o seu trabalho de biologia, ao longo do tempo a fotografia subaquática tomou um lugar mais lúdico, embora com o mesmo tipo de obstinação com que se entrega à fotografia astronómica: “Há uma fotografia [na exposição] de uma moreia com uma espécie limpadora no interior da boca, acho que estive meia-hora à espera para a espécie entrar e sair.”
Proteger o planeta
Com a exposição, Pedro Ré quis pôr as pessoas a olhar para cima e a olhar para baixo, chamando a atenção para estas duas realidades, o céu e o mar, que estão a sofrer grandes alterações devido à actividade humana. O aquecimento e a acidificação dos oceanos, a poluição por microplásticos, os gases com efeito de estufa e a quantidade de satélites que vão sendo acumulados ao redor da Terra são realidades que o cientista conhece de perto.
“A poluição dos oceanos é extremamente preocupante, a quantidade de plástico que está nos oceanos é algo que a maior parte das pessoas ainda não se apercebeu e todos nós estamos a contribuir para isso”, alerta. “Os microplásticos são em quantidade cada vez maior, muitas das espécies que se alimentam de pequenas partículas estão a alimentar-se de microplástico porque não conseguem fazer distinção”, explica, acrescentando que “todos nós já estamos a comer plástico através da cadeia trófica”.
Pedro Ré é testemunha destas mudanças, não só da quantidade de lixo que vê debaixo de água, mas também da degradação dos recifes de coral, causado pelo fenómeno conhecido por branqueamento. Devido ao aumento da temperatura da água, os corais expulsam as zooxantelas – seres unicelulares que fazem a fotossíntese – com quem vivem em simbiose e tornam-se brancos, acabando por morrer. “Eu não mergulho assim há tanto tempo nos recifes de coral, há 20 ou 30 anos, mas nota-se diferenças. No mar Vermelho, então, é contrastante”, sublinha.
A poluição do espaço à volta da Terra, por satélites, também preocupa o cientista. “Elon Musk vai pôr milhares de satélites a circular”, comenta Pedro Ré, referindo-se ao projecto do fundador da SpaceX, que quer colocar 40.000 pequenos satélites na órbita do planeta para estabelecer o Starlink, um novo serviço de Internet. A comunidade mundial de astrónomos teme que a luminosidade causada pelos satélites dificulte o acesso ao céu nocturno. “Os observatórios profissionais vão ter graves problemas, porque vamos ter milhares de satélites lá em cima. Neste momento estão centenas e já são um problema”, diz, e vai mais longe. “Essa poluição de satélites pode causar problemas às viagens espaciais.”
Ou seja, o excesso de satélites aumenta o risco duplo de não se conseguir estudar o cosmos a partir da Terra nem fazer viagens espaciais. Entre outras coisas, isso impossibilitaria a observação da Terra a partir do cosmos, uma experiência que, no passado, marcou a humanidade. “Aquela célebre imagem feita pela Apolo 8, a Terra vista do espaço, mudou totalmente a percepção que temos sobre o nosso planeta”, diz Pedro Ré, referindo-se à fotografia tirada em 1968 pelo astrónomo norte-americano William Anders, onde se vê o nascer da Terra a partir das redondezas da Lua. “Percebeu-se que há muita coisa que temos de proteger.”