Ao fim de dez meses só 48% dos doentes ligeiros mantinham imunidade à covid-19
Esmagadora maioria dos participantes no estudo não teve sintomas ou teve apenas sintomas ligeiros da doença. Dados vão ser agora tratados em profundidade, para procurar perceber, por exemplo, se há factores que, à partida, podem interferir na capacidade de cada pessoa desenvolver anticorpos.
Os resultados preliminares de um estudo promovido pela Ordem dos Médicos, e que contou com a participação de diferentes instituições, indicam que a imunidade ao SARS-CoV-2 em casos de doença ligeira ou assintomática não abrange todos os infectados e mantém-se, ao fim de dez meses, em menos de metade daqueles que desenvolveram algum tipo de anticorpos no período inicial da infecção. Os dados estão a ser tratados pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), mas já deixam lugar a alguns alertas, como aquele deixado pelo infecciologista Francisco Antunes. “Um passaporte de imunidade é de grande risco.”
O estudo envolveu 608 participantes, de Norte a Sul do país, infectados nos primeiros meses da pandemia, e que foram acompanhados nos últimos dez meses, com testes periódicos para verificar como evoluía a sua imunidade à primeira variante do SARS-CoV-2. Do grupo total de participantes, 19% eram assintomáticos e 80% tiveram sintomas, mas estes revelaram-se leves ou moderados, levando a que apenas 6% destes doentes necessitassem de internamento hospitalar, explicou o médico Álvaro Carvalho, da fundação que leva o seu nome e a quem coube apresentar os resultados preliminares do estudo. “Um quarto dos participantes não tinha anticorpos na primeira análise, e dos 76% que, à partida, tinham imunidade, alguns foram-na perdendo ao longo do estudo, da 2.ª para a 4.ª análise”, disse, acrescentando: “Dos 460 participantes que, à partida, tinham imunidade, pudemos comprovar a existência de anticorpos em 225 deles, ou 48% deste grupo, ao fim de dez meses [ou seja, 32% do total dos participantes no estudo].”
O representante da Fundação Álvaro Carvalho precisou que 103 participantes não compareceram à última análise, frisando que esta se realizou na altura de maior gravidade da pandemia, e que a intenção dos responsáveis pelo estudo é não desistir deles. “Estamos a pensar recuperar estes 103 participantes, fazendo uma nova análise em Abril, quando tiver transcorrido um ano sobre a doença, e, na mesma altura, também fazer uma 5.ª análise aos 225 que ainda mantinham a imunidade [no final desta fase do estudo], para ver se esta ainda continua”, disse.
Os dados recolhidos estão agora a ser tratados por uma equipa da UNL, para tentar encontrar respostas que vão além destas percentagens cruas. Algumas das questões em cima da mesa foram já lançadas por Francisco Antunes, que diz que se pode ter aberto “uma caixa de Pandora” com este trabalho, centrado em doentes menos graves da covid-19. “A percentagem de doentes sem imunidade ou que a perderam muito precocemente é superior à encontrada nos doentes hospitalizados. Sabemos, por outros estudos, que nos doentes hospitalizados menos de 10% apresentam-se sem imunidade, aqui, temos cerca de 25%. E sabemos que os doentes hospitalizados têm, em regra, uma imunidade mais robusta e que pode ser mais duradoura”, disse.
Por isso, defende, dever-se-ia tentar perceber se esta população de infectados (assintomáticos ou com sintomas ligeiros) está mais sujeita a reinfecções e se isto também será verdade para as novas variantes. O infecciologista também defendeu que se deve estudar melhor o peso destes doentes no desenvolvimento da pandemia e como devem ser tratados no âmbito das medidas de contenção.
Cautela com a imunidade
A tudo isto, explicou a professora Helena Canhão, da UNL, vai procurar agora dar-se resposta na análise mais detalhada dos dados. E também a outras questões levantadas pelo estudo, como a que foi realçada por Álvaro Carvalho: “A imunidade nas pessoas acima dos 50 e 70 anos é maior do que no grupo etário dos 30 aos 50. Dúvida: será porque a doença foi menos grave no grupo etário mais baixo e as pessoas mais idosas tiveram uma doença moderada, será por isso?” “É sobre todos estes aspectos que nos estamos a debruçar. Quando a pessoa desenvolve anticorpos é preciso perceber se depende do hospedeiro, da virulência do agente ou do ambiente em si”, respondeu-lhe a investigadora da Faculdade de Ciências Médicas da UNL.
Olhando para os resultados agora obtidos e também para o que já se conhece de outros trabalhos desenvolvidos - nomeadamente que o risco de reinfecções será maior do que aquilo que se pensava inicialmente, mas que, nesses casos, a doença tende a apresentar-se de forma menos grave ou até sem sintomas -, Francisco Antunes defendeu que faz sentido, dada a escassez de vacinas no mercado, que pessoas que já tiveram a covid-19 não estejam na lista de prioridades da vacinação. Por outro lado, disse, considerar que quem já foi infectado, está, garantidamente, imune à doença, conferindo-lhe uma espécie de “passaporte de imunidade”, deve ser visto com cautela. “O passaporte de imunidade é de grande risco, há questões que devem ser levantadas. Como já se sabe que as reinfecções são mais frequentes do que o que se pensava, muito em particular com as variantes, estas pessoas têm de ter o mesmo comportamento, em relação às medidas não farmacológicas de prevenção, que as pessoas que nunca foram infectadas”, defendeu.
Máscaras além da pandemia
Ou seja, usar máscara, manter o distanciamento físico e lavar as mãos com frequência. Mais: o infecciologista defende que, mesmo após o controlo da pandemia, o uso de máscara deve ser mantido em alguns casos específicos. “Acredito que essa medida da utilização das máscaras vá persistir, particularmente nas populações mais vulneráveis e numa altura em que as infecções respiratórias sejam mais frequentes”, afirmou, lembrando que a mutação de alguns vírus faz com que as pessoas possam ser infectadas praticamente todos os anos (como o da gripe) e que este ano, por causa, do uso de máscaras, a gripe quase não teve expressão no que seria o seu pico habitual de incidência.
A realização das análises aos participantes no estudo esteve a cargo do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa, mais um dos parceiros deste trabalho. Os restantes participantes são a Fundação Vox Populi, a Fundação Manuel Viegas Guerreiro, a Fundação The Claude and Sofia Marion Foundation. Helena Canhão salientou que a vantagem deste trabalho, comparando com outros já realizados, é que não se limita a dar uma fotografia de um doente num determinado momento, mas fazer o filme da sua evolução. “É muito mais robusto porque estas pessoas são acompanhadas ao longo do tempo e é possível perceber a sua evolução”, disse. Agora, disse, o trabalho continua ao nível da análise de dados, nomeadamente para tentar perceber se há factores que permitam predizer como irá desenvolver-se a imunidade numa pessoa com determinadas características.