A transição digital está em marcha e o objectivo é “não deixar ninguém para trás”
A pandemia da covid-19 veio intensificar o ritmo da transição digital que já está em marcha. Em Portugal, continua a existir quem não tenha acesso à Internet e o objectivo para os próximos anos é fazer com que a digitalização não reforce as desigualdades.
A revolução digital não é nova. O conceito é utilizado comummente para se referir às mudanças operadas pela tecnologia desde a segunda metade do século XX até aos dias de hoje. Uma revolução que continua em marcha, dir-se-á, destinada a marcar um novo período histórico. Mas com o passar dos anos essa revolução consolidou-se e o conceito perdeu a tónica revolucionária para se afirmar como estrutural. A revolução, momentânea e brusca, deu lugar a uma transição efectiva e permanente. Uma transição digital, já inevitável, apregoada como o mote para o futuro.
Mas o futuro está já aí. A pandemia da covid-19 apressou a transição digital, que irá receber uma parte significativa do mecanismo de recuperação e resiliência – a “bazuca” europeia. A transição digital é uma das prioridades da União Europeia. “A transição digital é preparar os nossos sistemas públicos, privados, as nossas pessoas e as nossas competências para uma transição que está a ocorrer. Não vamos fazê-la, ela já está aí. Nós vamos é prepará-la para que ninguém fique para trás”, diz ao PÚBLICO Maria Manuel Leitão Marques, deputada ao Parlamento Europeu.
A declaração da socialista, que serviu como ministra da Modernização Administrativa no primeiro governo de António Costa, recentra a questão nas consequências da transição digital: longe de ser uma utopia ao alcance de todos, a digitalização da vida colectiva pode implicar o aumento das desigualdades, enquanto extingue postos de trabalhos menos qualificados. “É muito importante que essa transição não se faça à custa da perda do emprego”, destaca Leitão Marques, acrescentando que são necessárias “contribuições públicas e privadas” para gerir a “qualificação dos trabalhadores” que podem ficar “um mês, dois, ou mais fora do seu posto de trabalho” enquanto estiverem a adquirir competências digitais.
Se o advento da tecnologia criou vários trabalhos – há uns anos ninguém acreditaria na profissão de youtuber -, o contrário também existe. E o reverso da medalha da transição digital vai afectar, sobretudo, os mais frágeis, alerta Marisa Matias. “São as pessoas que têm empregos mais precários, são as pessoas que têm vínculos mais precários, empregos menos especializados, são as pessoas mais pobres que ficam de fora, que estão a ficar de fora da transição”, afirma a eurodeputada do Bloco de Esquerda.
A bloquista defende que a exclusão dos “mais precários” dá-se à custa dos lucros das grandes empresas digitais e dá o exemplo da pandemia da covid-19, que serviu como “oportunidade para os gigantes do digital”, uma vez que, por exemplo, a Amazon aumentou quase 200% os lucros e o Facebook aumentou em 22% as receitas nos primeiros seis meses de 2020. “Há uma transição digital, que está a decorrer, e o que nós temos é de ter a capacidade de colocá-la ao serviço de toda a gente e não apenas como uma máquina de gerar lucro”.
Um estudo de 2018 do World Economic Fórum previa que um milhão de trabalhos iria desaparecer nos Estados Unidos até 2026. Em 2019, segundo os dados do Bureau of Labor Statistics, profissões como carteiros, operadores de call-center e trabalhadores têxteis terão tendência a desaparecer durante a próxima década. “Isso já aconteceu no passado. Com certeza que a transição digital vai destruir alguns empregos”, adverte, realisticamente, Maria Manuel Leitão Marques, exemplificando com a revolução industrial que “extinguiu muitos empregos”. Para a socialista, a “pergunta de um milhão de dólares” é perceber se o “número de novos empregos criados pela transição digital vai ser igual ao número de empregos destruídos”.
Literacia digital
Além da discussão sobre os empregos do futuro, há um debate sobre as consequências da transição digital no imediato. Olhando ao caso português: segundo o Eurostat, em Portugal 78% das pessoas não acederam à Internet nos últimos três meses. O número não é elevado no contexto europeu e está bem abaixo da média dos 27 (87%). Mais: em Portugal 82% dos agregados familiares têm acesso à banda larga de Internet — é um dos números mais baixos da União Europeia, partilhado pela Lituânia e apenas superior à Grécia (80%). Os que ainda não têm Internet em Portugal, mais de metade (57%) justificam com os elevados preços no acesso e no equipamento.
Para Maria Manuel Leitão Marques, uma das chaves para tornar a transição digital inclusiva está em dar competências às pessoas, a “todas” e “não apenas a uma população mais idosa e com pouca literacia digital”. “Nós vamos todos de precisar de competências digitais, como outrora precisámos de saber ler e escrever, e não apenas o básico”, afirma, defendendo que “vale a pena” dar competências às pessoas, mesmo àquelas que não têm Internet em casa, porque existem “sítios colectivos”, como as bibliotecas ou jardins públicos com wi-fi.
Depois, há que considerar a Internet um “direito universal”, como a “electricidade, a água potável e o telefone fixo”. Aí o “Estado tem de intervir” para “investir na conectividade, no acesso a computadores e na Internet mais barata”, podendo, por exemplo, subsidiar uma “tarifa social de wifi”.
Apesar das responsabilidades públicas, o esforço também deverá ser patrocinado pelas operadoras tecnológicas, as principais beneficiárias da transição digital: “Para podermos investir nisso tudo é preciso também que esses que ganham com a nova economia, paguem os impostos devido no local onde obtêm os seus clientes, isso é fundamental”, destaca a eurodeputada do PS.
Para Marisa Matias, também é necessário “garantir os direitos digitais como direitos humanos”, cabendo aos governos assegurar a “igualdade de acesso”, a “protecção de dados” através da “regulação pública”. Segundo a deputada, isso não está a acontecer actualmente e os riscos são “imensos”: não está em causa apenas “uma reprodução das desigualdades existentes”, mas antes “criar um fosso ainda maior entre pobres e ricos, incluídos e excluídos”. “A transição digital, tal como está a ser feita, como não tem salvaguardas suficientes para proteger os mais pobres, os mais desfavorecidos, os mais precários, não está a fazer outra coisa a não ser reforçar as desigualdades que já existem”, critica.
Estando a transição digital em marcha, a intervenção política é uma “urgência”, defende Marisa Matias. A “economia e a educação estão cada vez mais digitalizadas”, um rumo que é “inevitável”, mas que não pode “servir só alguns”. “A transição digital é sobretudo uma transição política, não é uma transição técnica, por isso precisa de regulamentação e acção política para que ninguém fique para trás”.
Leitão Marques não é tão pessimista e enaltece, também, as vantagens da Internet ao permitir “um mundo mais transparente”. A Internet, ela própria, pode servir para promover a igualdade: a digitalização de serviços permite melhorar o “acesso aos serviços públicos, empoderar as pessoas e melhorar educação”.
É “importante utilizar o digital para o bem”, refere, dando como exemplo a criação de uma estratégia para educação digital por parte da União Europeia. Mas não está tudo feito e há um longo caminho a percorrer, assume. “Temos de andar mais depressa? Concordo que sim. Mas andar depressa implica tomar medidas para esse efeito. Não basta dizer que só serve para criar desigualdades. Não é só o digital, o mundo está cheio de desigualdades”. O desafio agora é utilizar a transição digital para mitigar essas desigualdades.