Para onde vai a educação artística?

Diante da pandemia e das pedagogias telemáticas que, invariavelmente, estão a modificar a força e o sentido das tensões na educação artística, é em direção a um trabalho de repensar a educação, a história da arte e a escrita que aí domina que a procura se faz.

Num ensaio escrito por Ortega y Gasset em 1925, A desumanização da arte, há uma passagem que nos aflige: “Eis o momento adequado para pousar a caneta e deixar que um enorme bando de interrogações levante o seu voo de gruas.” Estas linhas surgem no fim de um breve capítulo no qual Ortega y Gasset aborda essa “viragem estranha” operada pela “nova arte” no interior das tradições históricas e artísticas características da época. O problema é de natureza estética e Ortega dirige-se aos “novos artistas”, em particular à desumanização da música que começa com Debussy e, no campo da literatura, à matriz cujo “novo estilo”, antecipado por Mallarmé, passou a dominar doravante no universo da poesia. Mas olhando à questão que dá título a este texto, a nossa maior aflição não se deve tanto ao vaticínio do filósofo espanhol. No fundo, nós já sabíamos que, nalgum instante, “aquele momento adequado para pousar a caneta” viria em nosso encalço, e é precisamente essa certeza agora desvendada que nos perturba.

Como num “arremesso do olhar”, usando as palavras de Handke, a atual situação pandémica obrigou-nos a rever a substância e o sentido das nossas ações, mas já não apenas do ponto de vista de uma ideia de comunidade. Desde a segunda metade do séc. XX, numa era cujo regime cibernético e de controlo veio alterar radicalmente a produção da nossa subjetividade, é a imagem de um indivíduo convertido em “divíduo”, diria Deleuze, que mais parece servir a um sistema de dados, fluxos e índices, no âmbito do qual o mercado da educação e da aprendizagem tem vindo a expandir-se. Ora, é diante do écran, mas sobretudo com a consciência do carácter equívoco a que recursivamente se presta o “humano” quando falamos de cultura e de arte, que urge, de novo, questionar-nos: para onde vai a educação artística? Tal interrogação, amplificada ainda pelo ressurgimento de uma telescola que veio acompanhar a viragem pandémica, constituiu-se num imperativo cuja ordem, porém, foi introduzida pela própria pandemia.

A possibilidade de alargar o programa #EstudoEmCasa a alunos do ensino secundário, cuja transmissão começou no início deste fevereiro, já havia sido anunciada pelo Governo muito antes de a pandemia de covid-19 em Portugal ter atingido níveis de risco extremamente elevado. Em setembro do ano passado, durante um encontro realizado na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto – “Diálogos entre Brasil e Portugal: o ensino artístico que temos e o que queremos” –, um grupo de investigadores, professores e artistas de ambos os países debateram os campos do ensino e da educação artística a partir dos seus próprios movimentos e práticas, procurando entender as vulnerabilidades e as resistências intrínsecas a uma área de atuação que continuamente se reconfigura. Nessa altura, a evidência da telescola, não só em Portugal, era bem visível, e a eventualidade de ela se estender ao ensino secundário (questionando-se, todavia, o dispositivo escolar aí presente, bem como os tempos e os espaços que na grelha semanal tal área poderia vir a ocupar) foi objeto de algumas conversas ao longo da semana que durou aquele encontro.

Um mês depois, em outubro, artistas e educadores de geografias tão diferentes reuniram-se numa conferência internacional levada a cabo pela secção checa da InSEA – International Society for Education Through Arta propósito das implicações culturais e políticas do coronavírus no domínio da educação artística. Para esse fórum, eu levei comigo uma parte das inquietações que partilhei aqui no PÚBLICO, em junho de 2020, acerca do significado que a vida escolar e a aprendizagem haviam forçosamente adquirido em consequência do confinamento social provocado pela pandemia em Portugal. A possibilidade de refletir nos efeitos produzidos globalmente pela pandemia no encerramento de galerias, museus e escolas, e no subsequente problema da produção das assimetrias culturais e educativas que a crise pandémica veio acentuar nos diferentes países, abriu portas a uma discussão cujo denominador comum passou por reivindicar uma educação artística capaz de se pensar a si mesma em relação às rápidas mudanças instauradas.

Com efeito, a necessidade de repensar a educação artística no atual contexto da pandemia já não pode ignorar em que medida os fétiches do digital parecem agora emergir como um novo “bálsamo terapêutico”, lembrando Nietzsche, pronto para salvar o sujeito da ameaça desumanizadora da arte e da educação. E, no entanto, os dois eventos aos quais eu acabo de me referir apenas foram possíveis graças à existência de suportes digitais que, na verdade, superaram o isolamento e a distância que nos têm acometido. Mas é olhando à espécie de subtileza natural e espontânea através da qual tais suportes vieram instalar-se nos meandros da educação artística que o nosso investimento crítico pode e deve ser feito.

Se antes, na telescola destinada ao ensino básico, a área da educação artística introduzia, num mesmo “bloco”, atividades tão singulares como expressão plástica, dramática, musical e dança, agora, no #EstudoEmCasa para o ensino secundário, a sua inscrição é de ordem totalmente disciplinar. Obedecendo ao princípio da separação, os tempos da educação artística equivalem-se à distribuição das disciplinas que compõem os planos de estudos dos cursos de artes visuais que vão do 10.º ao 12.º anos. Expondo uma realidade que é conhecida por todos, esta sala de aula do ensino secundário surge-nos, porém, com um maior grau de sobriedade que a lógica da explicação da matéria assim impõe. Investidos nessa figura de “mestres explicadores”, usando os termos de Rancière, os professores dão início a um jogo de cena do qual pouco parecem esperar, a não ser o cumprimento de um recitativo que já se encontra projetado numa das paredes do écran. Os seus corpos não podem efetivamente coabitar com a cena, não há “coro”. E, perante a tremenda insegurança da exposição, o dispositivo virtual com o qual se deparam permite, em todo o caso, subordinar as suas ações a um sentido de dever e produtividade.  Ora, “sabe-se tudo o que vai acontecer: quem quererá que tal aconteça realmente?”, diz-nos novamente Nietzsche. Mas tal parece ter ficado exposto num “bloco” dedicado à “Leitura e Escrita – 10.º ao 12.º ano”, e no âmbito do qual a “leitura de imagem” surgiu enquanto temática de uma aula.

Não é preciso sermos especialistas em cultura visual para sabermos que uma imagem não se rege pelos mesmos elementos que fazem do texto uma unidade linguística. Contudo, a leitura que foi proposta nesta aula assentou num conjunto de pressupostos concetuais (perceção, identificação e interpretação) cuja hierarquia gramatical não poderia estar mais ultrapassada. O que nos angustiou não foi tanto o facto de termos visto, como mais à frente nesta aula sucedeu, o “3 de maio de 1808” de Francisco de Goya a ser maltratado pelo olho formalista. Saber decifrar a “simbologia das cores”, um saber que se impõe a jovens alunos dos cursos de artes visuais, continua, porém, a sustentar-se numa ordem de critérios, cujas regras apenas servem à definição de uma norma determinada. Em artigo anterior, eu referia-me a essa tendência psicologista de abordar a cor segundo preceitos de ordem simbólico-emocional, o que releva sempre um quadro cultural de partida. Como professor de psicologia da educação artística não poderia estar mais em desacordo com tal abordagem. Mas entendo que o esquematismo puro que faz de qualquer simbologia um objeto disponível à sua interpretação, neste caso, falamos das cores, apenas vai facilitar uma lógica de atribuição de significado, cuja operação consiste em transformar cada uma das cores em “ideias” passíveis de apropriação mental.

Seja como for, o fenómeno da perceção situa-se muito além dos pressupostos cognitivistas, porque “ver não é uma forma de pensamento”, relembra-nos Merleau-Ponty. A solidariedade do observador e do observado implica sempre um “arranjo paradoxal”, adverte o filósofo francês, que é como quem diz “um ver através das distorções”, e no qual se constitui o movimento da nossa perceção. Nessa medida, o ato de percecionar um quadro (era o Goya) não supõe, necessariamente, a existência de um conhecimento histórico prévio ao exercício que é olhá-lo em si, mas antes a consciência de que as imagens se produzem enquanto sintomas dos regimes de verdade, sobretudo aquelas que foram definidas enquanto obras de arte.

Há um fingimento vital para o qual as formas artísticas nos conduzem, um gesto inumano, voltando a Ortega y Gasset, e cuja potência está na farsa que a arte opera sobre si própria. Nesse aspeto, qualquer que seja a sua forma, uma obra de arte, uma imagem fotográfica (tipologia usada na aula que observámos), todas se constituem numa fraude, são pura imagem, precisamente porque se refletem indefinidamente umas nas outras. Aceitar, portanto, que a transparência se constitui num a priori da perceção esconde um ato de profunda ingenuidade. Tal crença sujeita o nosso olhar a um poderoso crivo, aquele que pertence aos “especialistas”, os mesmos que, como numa aparição, vêm mostrar-nos tudo aquilo que é invisível, e cuja ordem se manifesta no sagrado, essa região apenas conhecida por alguns, quase nunca pelos alunos.

Mas voltemos àquele “momento adequado para pousar a caneta”, àquela interrogação colocada no início: para onde vai a educação artística? Diante da pandemia e das pedagogias telemáticas que, invariavelmente, estão a modificar a força e o sentido das tensões na educação artística, é em direção a um trabalho de repensar a educação, a história da arte e a escrita que aí domina que a procura se faz. Tal trabalho vem exigir-nos uma inscrição no tempo muito diferente daquela que conhecemos até agora, para que aquele “voo de gruas”, como na frase do Ortega, nos levante num desejo luminoso.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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