Faltou acompanhamento psicológico a homem que ameaçou mulher. Matou-a no trabalho
Uma mulher foi assassinada pelo ex-companheiro depois de oito anos a viverem juntos, ainda que divorciados. Era vítima de violência doméstica. O sistema falhou e não separou agressor da vítima.
Durante anos, Joana (nome fictício) teve de conviver com o seu agressor, dentro da sua própria casa. Durante 12 dias, o ex-companheiro foi dado como desaparecido. Suspeitou-se de tentativa de suicídio. Quando voltou a aparecer, não recebeu tratamento psicológico. Mais tarde, matou Joana, suicidando-se de seguida.
O caso de Joana, com 40 anos, e do ex-marido foi estudado pela Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD), que investigou o que poderia ter sido feito enquanto Joana estava viva e o que falhou na sua protecção. Publicado esta quinta-feira, o relatório refere que o sistema de apoio psicológico falhou e que poderia ter-se evitado a morte de mais uma mulher vítima de violência doméstica.
Mesmo depois do divórcio, que deveria ter colocado fim a uma relação “conflituosa”, Joana viu-se obrigada a viver e a conviver, dentro de casa, durante oito anos, com o ex-marido.
Durante aqueles anos, houve um período em que Joana esteve sozinha, sem o agressor por perto. O ex-marido desapareceu temporariamente, tendo enviado mensagens a pessoas próximas que “foram entendidas como uma ‘forma de despedida’, receando-se então que pudesse ‘atentar contra a sua própria vida’”, lê-se no relatório. Apareceu 12 dias depois, cancelaram-se as buscas e tudo voltou ao que era antes. É aqui que o relatório aponta a primeira falha: “Não foi efectuada qualquer sinalização desta situação, e por parte da unidade que lhe prestava cuidados de saúde não foi referido nenhum acompanhamento ou encaminhamento no âmbito da saúde mental”. Conclui a EARHVD: o agressor poderia ter sido acompanhado psicologicamente e afastado da vítima.
Sabendo do caso de Joana, a unidade de cuidados de saúde que acompanhava o agressor deveria “ter exigido uma intervenção de saúde mental, tendo em vista a prevenção do acto e o tratamento das suas causas”.
Em situações como esta, em que duas pessoas continuam a conviver depois de um processo de divórcio, existe uma tendência para se construir “uma tensão gradual, mesmo que de baixa intensidade”, que, “contudo, pode agravar-se drasticamente no momento em que, por exemplo, uma delas pretende iniciar, ou estabelecer, uma nova relação”. O que aconteceu com Joana. Durante aqueles oito anos, houve “indícios de persistente tensão, mal-estar e sofrimento psicológico em que o risco da ocorrência de manifestações de violência física está sempre presente”, explica o relatório, “sem que haja conhecimento de ter havido ou de ter sido procurada qualquer intervenção que os auxiliasse a ultrapassar essa situação”.
Dias antes do homicídio de Joana, o ex-marido ameaçou-a de morte, através de um telefonema. Apesar de ter conhecimento da ameaça, a entidade patronal de Joana nada fez pela sua protecção. “Existindo informação sobre o risco de violência, por maioria de razão sobre a existência de ameaça de morte, devem as entidades patronais tomar as providências necessárias para garantir a segurança de quem trabalha ao seu serviço”, escreve a Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica.
Este conjunto de episódios culminou no fatídico homicídio de Joana seguido do suicídio do seu ex-marido. “O homem escolheu, para cometer o crime e a seguir se suicidar, o local de trabalho da mulher.”
32% dos homicidas acabam por se suicidar
Segundo o relatório da EARHVD, os casos em que um homicida se suicida são mais frequentes quando existe uma relação íntima com a vítima, como era o caso de Joana. “Os dados estatísticos mais recentes confirmam-no e evidenciam a relevância do homicídio seguido de suicídio nas relações de intimidade em Portugal. Nos anos de 2014 a 2019, em 41 dos 87 casos investigados pela PJ (32%) o homicida (do sexo masculino em todos os casos) suicidou-se de seguida”.
Este fenómeno (homicídio seguido de suicídio), “cometido predominantemente por pessoas do sexo masculino, acontece maioritariamente no contexto de relações de intimidade, frequentemente num quadro de conflito, separação recente ou divórcio, sendo a grande proximidade física um factor acrescido de risco da sua ocorrência”.
O relatório critica ainda o tratamento do crime pela comunicação social. A maioria dos órgãos de informação citava a agência Lusa e as forças policiais sobre o que teria acontecido, centrando-se “na especulação”, “estando ausente a preocupação informativa sobre a problemática do homicídio, e do suicídio, bem como sobre os recursos a que as vítimas de violência doméstica podem aceder”. E faltaram as denúncias sobre as falhas do sistema.