Linhas (da frente) invisíveis
A desconstrução dos preconceitos é uma tarefa de toda a sociedade. Devemos a todas as mulheres e raparigas o esforço de construir um mundo em que escolhem o que querem ser.
Vivemos dias em que a importância da ciência na nossa vida coletiva é ainda mais evidente do que habitualmente. O combate à pandemia mobiliza diferentes campos científicos: epidemiologistas, virologistas, matemáticos, economistas. Múltiplos especialistas de diferentes áreas são chamados para esta luta e estão diariamente presentes no espaço público e mediático.
Mas há algo invisível que nos deve convocar: a quase ausência de mulheres entre peritos, mesmo quando sabemos que nas áreas da saúde são maioritárias. Tal é ainda mais desconcertante considerando que as mulheres estão em maioria entre os que combatem a pandemia na linha da frente. Estão na linha da frente, mas não estão tão presentes nas lideranças e entre os cientistas, em particular nas áreas tecnológicas.
Nas últimas décadas Portugal conseguiu um progresso formidável nas qualificações, e esse progresso é ainda mais impressionante nas mulheres. As mulheres são hoje mais de 60% dos licenciados, mas os estereótipos continuam a condicionar as escolhas das áreas de ensino e das profissões. Cerca de 40% das mulheres diplomadas em Portugal são-no nas áreas da educação, saúde e ação social; e em quase 20 anos, os diplomados em TIC mais do que duplicaram, enquanto a representação feminina caiu de 26% para 21%.
Ao longo do tempo, este tipo de diferença foi sendo desvalorizada, explicada por uma questão de “gosto” ou de “jeito”: as raparigas gostam de letras, os rapazes de ciência. Mas sabemos como se constroem estes preconceitos, sabemos as linhas invisíveis que delineiam estes percursos. As perceções de autoeficácia e as atitudes são fortemente influenciadas pelas famílias, pelos sistemas educativos e escolas, do pré-escolar ao ensino superior, mas também pela existência de figuras de referência e pelas representações de mulheres nos media. A desconstrução dos preconceitos é, por isso mesmo, uma tarefa de toda a sociedade. Um desafio que diz respeito a todos.
O Governo tem estado presente neste desafio. Foi lançado o “Engenheiras por um dia” que envolve alunos, empresas e profissionais em iniciativas orientadas para a desconstrução dos estereótipos. No âmbito do Contrato de Legislatura, as instituições do Ensino Superior assumiram o compromisso de combater a segregação profissional entre homens e mulheres. A magnitude do desafio impõe-nos que estes programas cheguem ao maior número de pessoas, pelo que a transição digital e os programas de melhoria das qualificações terão inscritas metas concretas para corrigir esta desigualdade.
São três as razões pelas quais é necessário eliminar estas diferenças. Em primeiro lugar, devemos a todas as mulheres e raparigas o esforço de construir um mundo em que escolhem o que querem ser. Em segundo lugar, porque sabemos que, ao atravessar uma profunda transição digital, as desigualdades de acesso a profissões estratégicas da economia do futuro se vão traduzir em novas desigualdades salariais e de acesso aos lugares de decisão. Finalmente, porque as transições climática e digital não podem deixar de fora as mulheres, não apenas porque não seriam justas, mas porque estas transições não contribuirão para a recuperação económica se não contarem com metade da população: as mulheres.
Este é o nosso compromisso: dar visibilidade às linhas invisíveis. Só podemos mudar o que conseguimos ver. As linhas da frente devem ser vistas, as linhas que criam as diferenças têm de ser reveladas. Assim, e só assim, podemos construir uma sociedade em que rapazes e raparigas sejam verdadeiramente livres de prosseguir os seus projetos de vida.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico