Quando os pés não chegavam ao chão da cadeira

Tenho ideia de que gostava mesmo dos meus pais no restaurante, tinha vaidade deles, pareciam-me despreocupados, jovens e bonitos. Talvez esta memória e esta sensação sejam de agora, não sei.

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Uma vez por mês, ao domingo, vestíamos a melhor roupa que tínhamos e íamos os três almoçar fora. Nessa altura, em que os meus pés ainda ficavam suspensos da cadeira sem atingirem o chão, um bitoque parecia-me um prato com uma quantidade de comida suficiente para três pessoas, mas os meus pais pediam sempre uma dose de comida de adultos só para os dois, que vinha numa travessa de inox, e que dividiam irmãmente.

Lembro-me de ver o prato branco de loiça com o bitoque a caminho do meu lugar, nas mãos grandes e ossudas do empregado do restaurante em Cacilhas, e de ficar tão contente quando era pousado à minha frente, sobretudo pelo cheiro e pelas cores análogas, amarelo das batatas fritas e laranja da gema do ovo, que só de olhar me faziam feliz.

Muito raramente, íamos à marisqueira comer cadelinhas e uma sapateira, que tinha de dar para todos. Para mim, a melhor comida da marisqueira era o pão torrado que mergulhava no molho das cadelinhas. Ir à marisqueira era raro por ser mais caro, um verdadeiro luxo para a nossa família. Uma vez, numa marisqueira famosa em Almada, a que íamos literalmente quando o rei fazia anos (o pai ou mãe), calhou-nos uma mosca na travessa. Uma mosca morta, afogada na molhanga que tanto me satisfazia comer com pão. Fiquei a olhar com nojo para a defunta entre as conchas das cadelinhas. O meu pai chamou o empregado, que se desculpou várias vezes e disse que nos trazia outra dose por conta da casa. A minha mãe, agoniada até não mais poder, não quis e recusou. Disse que o melhor era pedir a conta das entradas e irmos embora. Assim foi, nunca mais voltámos àquela marisqueira e fazíamos questão de dizer em voz alta que era uma porcaria, sempre que calhava passarmos à porta num passeio domingueiro.

Já em adulta, há uns anos, tornei-me alérgica ou intolerante, ou eu sei lá, ao marisco. Sempre que comia umas gambas, umas amêijoas, o que fosse, o resultado era sempre o mesmo: vomitava. Deixei de comer marisco; se o corpo não quer, não se deve insistir. Em casa nunca fiz marisco, nunca dei a provar à minha filha. Apesar de já termos feito testes que confirmam que não tem alergia, desconfio dos resultados e continuo com receio que tenha herdado a minha estranha intolerância que só se manifestou em adulta. Chamem-me paranóica, quero lá saber. Enquanto for eu a decidir aquilo que come, não lhe há-de passar marisco pelo estreito.

Ao contrário dos meus pais, levar a minha filha a um restaurante nunca foi um evento extraordinário. Desde pequenina que vamos juntas aos dias de semana, ou quando calha comer canjinha, a Campo de Ourique e ao Saldanhade que tanto gosta por ser ao balcão, e a tantos outros restaurantes que nos dêem jeito, gosto e que a minha carteira consiga comportar. Muitas vezes com o sentimento contraditório de estar a fazer algo de bom e de errado em simultâneo. Os ecos familiares que me dizem que é dinheiro mal empregue porque se come mal nos restaurantes, a comida não presta, etc. e tal. E a minha vontade de lhe proporcionar a alegria que eu sentia nos restaurantes, quando os meus pés não chegavam ao chão e a minha cabeça ficava um pouco acima do tampo da mesa quando eu estava de pé.

Ir ao restaurante era uma ocasião feliz porque não tínhamos de fazer nada, e ficava à mesa com o pai e a mãe a vê-los conversar, com as suas melhores roupas; a mãe bem penteada, com os caracóis pretos todos arranjadinhos num bouquet capilar, maquilhada com batom cor-de-rosa ou vermelho, e o pai de camisa. E muitas vezes eu, desconfortável dentro de uns collants de lã, que me arrepanhavam os movimentos de alguma das pernas, e dentro de um vestido cujo tecido às vezes picava, sentia-me vaidosa de mim e orgulhosa da minha família. Tenho ideia de que gostava mesmo dos meus pais no restaurante, tinha vaidade deles, pareciam-me despreocupados, jovens e bonitos. Talvez esta memória e esta sensação sejam de agora, não sei. Contudo, espero que a minha filha também se lembre de mim assim, da sua mãe despreocupada e arranjadinha, quando já tiver outras companhias e outras alegrias nos restaurantes que frequentar. 

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