Morreu Jean-Claude Carrière, guionista de Buñuel e escritor que dizia não ter ego
Colaborou durante quase duas décadas com o cineasta espanhol. Trabalhou também com Jean-Luc Godard, Milos Forman, Costa Gavras, Louis Malle ou Jacques Tati. Tinha 89 anos.
Dizia, com orgulho, que trabalhara todas as formas de escrita e que colaborar com outros criadores lhe fazia bem. “Há algo em mim que fica feliz quando se põe ao serviço de um autor, quando o meu pensamento se funde com o seu, adaptando-o e melhorando-o. Não tenho ego”, garantia o escritor Jean-Claude Carrière, um dos grandes nomes do surrealismo francês, que assinou e co-assinou mais de cem títulos para cinema, televisão e teatro, assim como obras de ficção, poesia e até ensaio.
Carrière, que tinha problemas cardíacos, morreu na segunda-feira durante o sono, na sua casa em Paris, informou a filha, Kiara Carrière, através da agência de notícias France Presse.
Nascido em Setembro de 1931 e formado em História e Literatura, estreou-se na curta-metragem de ficção como realizador em 1961 com Rupture, e logo no ano seguinte ganhou o Óscar nesta categoria enquanto autor do argumento e produtor de Heureux Anniversaire, realizado por Pierre Étaix.
Foi também ainda no começo da década de 1960 que conheceu, no Festival de Cannes, o cineasta Luis Buñuel, com quem viria a colaborar durante quase 20 anos, o que o colocou no topo da prestigiante lista de realizadores com quem trabalhou e que inclui Jean-Luc Godard, Milos Forman, Costa-Gavras, Louis Malle, Jacques Tati e Andrzej Wajda, entre um rol quase infindável de nomes onde se contam inúmeros dos mais importantes cineastas do último meio século.
Jean-Claude Carrière estava ainda na escola e frequentava a Cinemateca parisiense três vezes por semana quando foi apresentado ao realizador que haveria de fazer dele um argumentista – Jacques Tati. Foi o autor de Há Festa na Aldeia e As Férias do Sr. Hulot quem lhe mostrou as potencialidades da escrita para o cinema e o incentivou.
O mestre Buñuel
Seria Buñuel, no entanto, que mais marcaria a sua carreira. Jean-Claude Carrière é, aliás, o autor dos argumentos de quase todos os filmes do cineasta espanhol, com destaque para A Bela de Dia, O Charme Discreto da Burguesia, A Via Láctea, O Fantasma da Liberdade e, não menos importante, o seu último filme, Este Obscuro Objecto de Desejo. Vários deles estão actualmente disponíveis para visionamento na plataforma de streaming Filmin.
Quando o realizador morreu, o argumentista francês sentiu profundamente a sua perda. “Um mestre continua a ser um mestre mesmo depois de morrer. Não passam dois dias sem que lhe pergunte alguma coisa”, contou numa entrevista ao diário espanhol El País em 2015. “Exagera-se sempre um pouco o seu perfil de provocador. Na vida quotidiana, Buñuel foi um homem muito bom, que de vez em quando esvaziava os bolsos para dar dinheiro aos mendigos. Podia ser cínico e perturbante, mas nunca mau. A maioria das pessoas não sabe que ele era muito divertido, cómico até. Com Buñuel, um dia sem rir era um dia perdido.”
Quer como autor do argumento, quer como co-autor, Carrière está porém também ligado a títulos de outros cineastas, como Os Amores de uma Adolescente (Milos Forman, 1971), O Tambor (Volker Schlöndorff, 1979), Salve-se Quem Puder (Jean-Luc Godard, 1980), Max, Meu Amor (Nagisa Oshima, 1986), A Insustentável Leveza do Ser (Philip Kaufman, 1988), Os Fantasmas de Goya (Milos Forman, 2006), O Laço Branco (Michael Haneke, 2009), À Sombra das Mulheres (Philippe Garrel, 2015), e o mais recente À Porta da Eternidade (Julian Schnabel, 2018). O seu derradeiro trabalho juntou-o de novo a Garrel, na co-escrita do argumento de O Sal das Lágrimas (2020).
Um ego ao serviço dos outros
Na carreira deste homem que se definia como um “contador de histórias”, lembra esta terça-feira o diário espanhol El Mundo, e como um “enciclopedista do tempo dos irmãos Lumière”, escreve o francês Le Monde, houve tempo ainda para a interpretação e para a publicação de obras de ficção, poesia e ensaio. E para o teatro, onde por exemplo trabalhou lado a lado com Peter Brook na criação do épico Mahabharata.
Costumava dizer que a função do argumentista não era “fazer literatura”, e que para isso havia outros espaços, que também soube preencher com a sua obra de escritor. A forma como entendia o trabalho de argumentista reflecte a sua declarada “ausência de ego”: o que mais impressiona no conjunto do seu trabalho é a forma como se apagava para fazer prevalecer a visão e as obsessões temáticas dos autores com quem colaborava. Entre um argumento de Carrière para Buñuel e um argumento de Carrière para Garrel não há qualquer semelhança, e o resultado é sempre um filme de Buñuel ou um filme de Garrel. Mais do que “não ter ego”, Carrière tinha um ego fortíssimo, porque fortíssimo tem de ser o ego que se predispõe a esta modéstia do encontro com o olhar dos outros sem nunca se lhe querer sobrepor.
Como actor, sempre em pequenos papéis, entrou em mais de 30 produções, incluindo Cópia Certificada, de Abbas Kiarostami; como escritor assinou A Linguagem Secreta do Cinema, Não Contem com o Fim dos Livros (com Umberto Eco) ou Os Fantasmas de Goya (com Milos Forman).