Em Santa Maria da Feira, um sem-abrigo não troca a sua cadela por uma casa
Os centros disponíveis para o acolher não contemplam a sua companheira de quatro patas. Luís recusa-se a abandonar Kika e está disposto a tudo: ir para qualquer local no país, trabalhar no que houver. Desde que a mantenha a seu lado.
Luís Pereira nasceu na antiga freguesia de São Martinho, em Sintra, e aos quatro anos foi abandonado pela família biológica, assim como a sua irmã, na Santa Casa da Misericórdia, onde foi adoptado por um casal de Santa Maria da Feira. A droga lançou-o para as ruas e, embora tenha dado a volta à dependência, arranjar casa é um desafio. Sobretudo porque se recusa a abandonar aquela que é a sua única companhia e o seu maior apoio: a cadela Kika. Entre uma casa e o animal, Luís recusa-se a abdicar da amiga..
Nos últimos dias tem vivido numa antiga pensão da cidade, subsidiada pela Segurança Social, depois de um jornal local ter dado conta que, nestes dias de pandemia, estava a viver numa tenda com a sua cadela, a Kika. Porquê? Não a queria abandonar. “Aqui na Feira e na zona de Aveiro, não há soluções para pessoas sem-abrigo com animais. Até só para sem-abrigo há muito pouco. Eu estou a lutar e vou continuar a lutar para não ter de abandonar a minha cadela”, conta ao PÚBLICO.
Luís tinha encontrado uma luz ao fundo do túnel quando o aceitaram na “Condeixa Pa’tudos”, em Coimbra. Em troca de uma casa, para si e para Kika, e alimentação, disponibilizou-se para ajudar com os animais que eram recolhidos pela associação, ao mesmo tempo que auxiliava na limpeza da quinta. Mas, devido a uma doença infecciosa que apanhou, foi obrigado a sair e a ficar sem rumo novamente.
É difícil para Luís explicar de onde vem a sua forte conexão a Kika. Já viveu com outros dois animais, enquanto era sem-abrigo, mas acabou por ter de os dar para adopção em troca de um tecto. “A minha ligação com o Mickey e o Max não era tão forte como a que tenho com a Kika. Quando estava a viver em Santo Ovídio, no Porto, com o Mickey, eu fiquei muito doente com uma pneumonia e tive de recorrer ao Narcóticos Anónimos para encontrar um abrigo para me tratar”, conta.
As drogas apareceram na sua vida aos 24 anos mas este já é um capítulo fechado para o homem, agora, com 35. “A minha vida começou a decair nessa altura. Cheguei a roubar algumas coisas da minha casa para vender e poder ter dinheiro para consumir, o que fez a minha família fechar-se para mim. Mesmo agora que estou limpo”.
E a Kika foi fundamental para conseguir dar a volta à vida. Luís guarda a cédula de nascimento da sua cadela em cima da mesinha de cabeceira do seu quarto, na pensão. “Nasceu a 29 de Abril de 2019. Ainda nem dois anos tem. Fui buscá-la a um canil do Porto quando vivia lá nas ruas. Eu consumia na altura e decidi pôr um fim a essa dependência. Daí querer arranjar uma companhia para me ajudar”, afirma. A partir daí, foram-se aproximando cada vez mais. Luís deixou as drogas aos poucos, ao mesmo tempo que Kika crescia ao seu lado. “Desde o início, eu liguei-me muito à cadela, como nunca me tinha acontecido com os outros animais que tive. Ela é uma cadela diferente de todos os outros cães. Não sei expressar o meu amor pela Kika. Ela salvou-me a vida”, confidencia, enquanto acaricia a cabeça do animal.
É tudo o que lhe resta. Um dia antes do Natal, Luís estava em Coimbra, num centro para pessoas sem-abrigo, mas que não aceitava animais – o Farol. Estava “a bater mal”, nas palavras do próprio, por não ver a sua cadela há mais de três semanas e estar fechado há duas devido às regras sanitárias impostas pelo centro. Decidiu sair de lá e rumar a Santa Maria da Feira, onde Kika se encontrava na associação “Cão ou sem Casa?”. “No Natal, eu não tive ninguém que me ligasse. Nem família, nem amigos. Só tinha a minha Kika aqui comigo para me fazer companhia”, lamenta, emocionado.
Faltam soluções
Ana Tavares é uma das colaboradoras da associação “Cão ou sem Casa” . A sua experiência na área, tanto profissional como pessoal, leva-a a perceber a ligação que foi estabelecida entre Luís e Kika. “No caso do Luís, por culpa do contexto, ele deambula sozinho. E a Kika tornou-se algo constante na vida dele. Não importava quantas vezes ele errava, ela estava lá sempre com ele – é um animal fiel, como quase todos os animais. Já pedir isso das pessoas é mais complicado. Elas criam expectativas e, quando existem erros sistemáticos, acabam por se afastar”, explica.
Não é a primeira vez que entrou em contacto com o caso de Luís. No ano passado, um vereador da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, numa caminhada por um dos parques da cidade, encontrou-o a viver numa tenda – um caso idêntico àquele registado em Janeiro – e decidiu ligar a Ana para encontrarem uma solução.
A “Cão ou sem Casa” não se especializa nestes problemas – é uma associação que promove a adopção de animais abandonados, através de sessões fotográficas dos mesmos. Ana admite que ficou “revoltada” quando soube da situação em que Luís se encontrava e foi por isso que decidiu ajudar. No entanto, explica que “não existem soluções, localmente, que congreguem as duas problemáticas do caso – o lado animal e o humano”. A nível estrutural, tanto a Câmara Municipal, como a Segurança Social, não podem fazer muito – “Existem abrigos desimpedidos, sim, mas eles são obrigados a estar vazios pois estão reservados para eventuais desastres naturais, por exemplo. Não podem receber o Luís e a Kika”, afirma.
Em discussão na especialidade do Orçamento do Estado de 2021, o PAN conseguiu que o Governo acolhesse uma medida para adaptar os centros para sem-abrigo, de forma a poder albergar os seus companheiros de quatro patas - mas a medida ainda não começou a ser implementada.
A correr contra o tempo
Ana e Luís mantêm a esperança de que ainda seja possível encontrar uma solução por outras vias. Depois de tantos anos a não conseguir manter algo estável na sua vida, lamenta que a solução existente seja tiraram-lhe a única coisa constante que tem, a única relação que tem preservado.
Sem oportunidades de arranjar um trabalho devido à situação pandémica, nem possibilidades de alugar uma casa em Santa Maria da Feira para viver com a Kika, Luís apela a algum tipo de ajuda. Diz que não se importa de onde ela vem, “seja do Norte ou Sul do país”, nem com que condições – “não tenho medo de trabalhar”. “Eu vou com a Kika para onde tiver de ir, desde que possa ficar com ela. Não é dinheiro que está aqui em causa, é estar com ela”, afirma.
O tempo está a contar. Em pouco mais de uma semana, vai ter de fazer uma escolha quando baterem à porta do seu quarto na pensão com a oferta de um novo abrigo, exclusivo para pessoas. Luís apresenta-a desta forma: “Ou morro de uma pneumonia na rua, por amor à cadela, ou dou-a para adopção para conseguir uma melhor vida para mim”.
Texto editado por Ana Fernandes