Sem livros, há menos c(ult)ura
O Governo está a apertar o laço no pescoço das editoras e do acesso à informação, à educação, ao entretenimento e à cultura dos seus cidadãos.
Se não se escrevesse tanto sobre estes tempos, os historiadores do futuro teriam dificuldade em imaginar a bizarria do que nos foi acontecer. A acrescer às quarentenas sucessivas, ao facto de muitos de nós estarem a trabalhar a partir de casa há dez meses consecutivos, tudo por causa de um sujeito que decidiu fazer de um morcego o seu jantar, agora um país com quase mil anos de História decidiu proibir os seus cidadãos de adquirir livros.
Concedo que, dita desta forma, a coisa soa apocalíptica. Os cidadãos não estão liminarmente proibidos de comprar livros – podem fazê-lo pela internet e, dias mais tarde, poderão estar a lê-los bem recostados no cadeirão mais confortável lá de casa. Mas os livros estão muito menos acessíveis, após terem deixado de ser considerados essenciais, e agora não podem ser comprados em livrarias, que estão encerradas, nem em hipermercados, que circunscreveram essas áreas como se se tratassem de uma cena de um crime É uma medida que faz parte de um par de meses horribilis para o governo de António Costa.
Não o digo num tom bélico, que fique assente – toda a minha simpatia e gratidão para com os nossos governantes, que têm dado o seu melhor em circunstâncias que me são inimagináveis e que nos têm salvo de cenários ainda piores do que estes que temos vivido. Alguns erros são sempre inevitáveis. Mas os erros também podem ser corrigidos, e este é fácil de corrigir já na próxima renovação do estado de emergência: os livros têm de voltar a ser essenciais.
Não tenho como negar que sou parte interessada na revogação desta medida: sou um leitor com uma avidez tão alucinada que chega a ser pouco saudável, ao ponto de ter decidido há duas mãos cheias de anos que também haveria de escrever os meus próprios livros. Estão escritos e publicados. Mas não escrevo esta crónica enquanto autor, escrevo-a enquanto leitor que quer comprar livros com a mesma facilidade que compra fruta ou pão – e enquanto cidadão que prefere que toda a comunidade tenha acesso a informação e cultura. Não apenas alguns, não apenas os que podem ou sabem como comprar online.
Acompanhemos por momentos a ida do senhor Joaquim, 67 anos, ao hipermercado. Pouco habituado às máquinas digitais – a nora até já lhe tentou explicar como podia comprar coisas pela internet, mas o senhor Joaquim mascara a inaptidão com desinteresse -, costumava aproveitar a volta dominical pelo bairro para espreitar as novidades na livraria da esquina. Até era raro comprar um livro por aquelas paragens, gostava mais do ambiente acolhedor e do cheiro dos livros. Normalmente, o lugar onde cedia à tentação era o hipermercado, onde ia três vezes por semana com a esposa. Aproveitava o tempo de espera na fila para espreitar as promoções ou um lançamento qualquer que lhe havia escapado. E, já que estava com a mão na carteira, acabaria por aproveitar. Porque o que nos dizem os dados é que boa parte das compras de livros são feitas por impulso nos hipermercados, como costumava fazer o senhor Joaquim. Nas circunstâncias actuais, o senhor Joaquim não tem livros para ver nem para comprar.
Esta medida não é apenas grave para os cidadãos e para as livrarias (especialmente as mais pequenas). É uma medida potencialmente letal para as editoras e para todos os que delas vivem – editores, tradutores, revisores, escritores, equipas de comunicação. Porque, no meio do caos, ainda podíamos entrar com cuidados, x pessoas de cada vez, numa livraria, ou escolher um livro no hipermercado durante as compras semanais. Inicialmente, a compra de livros em hipermercados foi proibida para proteger as livrarias, que podiam continuar a vender ao postigo. Depois, quando as vendas ao postigo foram proibidas, os livros continuaram proibidos nos hipermercados. Meio de subsistência para as editoras? Nenhum (ou quase, porque as vendas online são residuais, representam apenas dez por cento das receitas habituais).
Ao manter esta medida, o Governo está a apertar o laço no pescoço das editoras e do acesso à informação, à educação, ao entretenimento e à cultura dos seus cidadãos. E a ser contraproducente, porque há poucos hábitos que promovam mais o distanciamento e o confinamento do que a leitura de um bom livro. A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) bem tem levantado a voz contra a manutenção desta medida, mas o grito ainda só embateu em ouvidos surdos. Que no final desta semana, quando for revisto e prolongado o estado de emergência, os nossos governantes possam fazer aquilo que não têm feito até agora: dar um pouco mais de atenção à cultura. Porque a cultura também tem contribuído para a nossa cura.