Processo de vacinação, abusos e perigo de uma desconfiança generalizada

Viver na pandemia já de si é angustiante, mais ainda num clima social de desconfiança sobre cada um e sobre tudo e todos, tornando as relações sociais insalubres.

Vivemos um momento crítico, marcado por incertezas e instabilidades, mas também pela generalização da desconfiança: desconfiança dos cidadãos em relação às instituições; das instituições em relação aos cidadãos; enfim, da desconfiança entre cidadãos. Este clima de desconfiança generalizada nas relações sociais está a adensar-se e é muito preocupante; só conduz a menor coesão social, precisamente num tempo em que ela é tão necessária. O problema não é novo, não é meramente português, nem tão-pouco tem causa única e simples; lavra em várias frentes e tem agora um novo episódio: a intolerável multiplicação de casos de aproveitamento abusivo das vacinas. O episódio, qual sismo seguido de muitas réplicas, pode sumariamente caracterizar-se pela replicação sucessiva de abusos e más práticas, contaminando um processo de vacinação em curso, complexo, mas que no geral está a correr bem. Junto com outros episódios passados, de diferente natureza, está a gerar fortes abalos, todos convergindo negativamente para a produção de efeitos acumulados demolidores sobre os laços de confiança, já fragilizados.

Numa sociedade mediatizada (que não quer dizer necessariamente informada), as tramas que se leem, ouvem e veem envolvem diversos atores e instituições. Embora numa análise mais fina se possam entrecruzar, os casos relatados parecem distintos: uns estarão relacionados com a chamada cunha (velha instituição), outros com a própria composição das listas de vacinação (critérios discutíveis), outros com as ditas sobras (num quadro de escassez), outros com interpretações enviesadas (muito livres e a gosto dos chico-espertos), outros ainda com vanglórias pessoais (ingenuamente expressas em mostras públicas nas redes sociais). Porém, nem todos terão relevância criminal ou disciplinar. Alguns sim, e serão eventualmente sancionados. Outros não, ficando pela censura social ou moral. Vários, porventura a maioria, serão difíceis de classificar, porque se situam em posições de fronteira. Dependerá sempre das capacidades de escrutínio e do papel público de controlo sobre o exercício dos mais variados poderes e interesses envolvidos. Seja como for, o certo é que num frenesim coletivo tudo e todos são colocados no mesmo saco, sem critério nem enquadramento. A soma de todos os casos resulta em mais um dano infligido na confiança coletiva, com implicações profundas ao nível da generalização da desconfiança. Trata-se de um dano insidioso que no limite contribui para corroer por dentro, sorrateiramente, a própria democracia.

Viver na pandemia já de si é angustiante, mais ainda num clima social de desconfiança sobre cada um e sobre tudo e todos, tornando as relações sociais insalubres. Minada a confiança, não é fácil reganhá-la e há sempre quem esteja à espreita para politicamente aproveitar. É daqui que decorre o perigo: a insalubridade é terreno fértil para o crescimento do extremismo, que se alimenta das desconfianças, além das desigualdades e dos medos que campeiam. Por isso, impõe-se separar o joio do trigo, responsabilizar quem tiver de o ser, e muito rigor e isenção na procura incessante da restauração e reconhecimento da confiança mútua como condição essencial da nossa própria existência coletiva.  Há sinais de esperança.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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