Barahona Fernandes e a leucotomia
É certo que Barahona foi marcado pela filosofia alemã, mas não pelo pensamento fascista, ao qual sempre se opôs frontal e energicamente.
Tive hoje a possibilidade de visualizar um documentário transmitido na televisão em 14 de janeiro, a propósito do problema da psicocirurgia e em especial da chamada ‘leucotomia pré-frontal’, a técnica operatória criada por Egas Moniz. O debate é ilustrado por um caso famoso de doente leucotomizada, a mulher de Marcelo Caetano.
Entre outras pessoas, são entrevistados alguns especialistas, neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras de várias orientações. Num dado ponto é dito que Barahona Fernandes, que fizera um longo estágio de estudo na Alemanha, de 1934 a 1936, teria sido influenciado pela filosofia alemã da época; e é sugerido que sofrera então alguma espécie de influência do ideário nazi, correlacionando-a com a sua adesão às terapêuticas biológicas da época (electrochoque, insulinoterapia, psicocirurgia).
A ideia da leucotomia deve-se a Egas Moniz, guiado por trabalhos de Foulton e Jacobsen em chimpanzés; as intervenções cirúrgicas foram praticadas por Almeida Lima; Barahona Fernandes elaborou as histórias clínicas dos primeiros leucotomizados, antes e depois da intervenção.
É certo que Barahona foi marcado pela filosofia alemã, mas não pelo pensamento fascista, ao qual sempre se opôs frontal e energicamente. Foi aluno da Karl Jaspers, filósofo psiquiatra e fundador da psicopatologia, ele próprio perseguido pelo regímen hitleriano; e tornou-se discípulo de Nicolai Hartmann, de quem adoptou a teoria em camadas do aparelho psíquico.
Para além destas figuras ilustres, estagiou junto de psiquiatras, como Kurt Schneider, e neuropsiquiatras, como Carl Kleist. No regresso da Alemanha, jovem ainda, Barahona modernizou e fez progredir a psiquiatria portuguesa em todos os seus domínios, nos planos da clínica, da investigação e da docência.
Conheci-o em 1960, como aluno da cadeira de Psicologia médica: exprimia então o maior entusiasmo perante o aparecimento dos primeiros psicofármacos; e trabalhei como seu colaborador desde 1970, na clínica psiquiátrica do Hospital de Santa Maria, e na Faculdade de Medicina de Lisboa, desde 1974. Nesse mesmo ano tornara-se o primeiro reitor do período democrático.
Ao longo desses anos de trabalho, e até ao seu desaparecimento, discutimos inúmeros aspectos, teóricos e práticos, da psiquiatria. Um tema que sempre nos separou foi o da psicocirurgia. Porque nunca aceitei a legitimidade de tal prática, e nenhum de nós persuadiu o outro das suas razões.
Contudo, os argumentos que ele apresentava tinham fundamento: por um lado, quando surgiu a leucotomia não se dispunha de psicofármacos, e em especial de neurolépticos, votando os doentes psicóticos a grande e interminável sofrimento; por outro lado, a comunidade científica internacional dera a sua caução terapêutica à leucotomia, como o prova a atribuição do prémio Nobel a Moniz (dividido com o suíço Walter Rudolf Hess – infeliz coincidência de nome com o de um ministro hitleriano! – por trabalhos de Hess sobre neurofisiologia cerebral).
Releio agora, no prefácio que escrevi para o volume em que se reúne uma boa parte dos artigos de Barahona, o seguinte parágrafo: “Diversas vezes dialoguei com Barahona Fernandes, criticamente e com plena liberdade – como sempre aconteceu – sobre o ‘caso da leucotomia’. Às minhas objecções éticas (direitos dos doentes), noéticas (redução intelectiva irreversível) e estéticas (lesão do esplêndido plexo de redes neuronais no seu ponto filogeneticamente mais elevado), opunha ele o argumento pragmático das melhoras de formas graves e porventura irrecuperáveis de esquizofrenias, doenças obsessivas e certos quadros de melancolia.” [1]
Para concluir, algo deve ser dito: desde que iniciei a minha colaboração com Barahona Fernandes nenhum doente foi proposto para leucotomia. Nem teria sido já possível, apesar de a técnica se ter tornado entretanto muito mais rigorosa e menos lesiva, devido à aplicação de meios estereotáxicos de grande precisão. A leucotomia tornara-se realmente anacrónica, e arrumara definitivamente o seu lugar na História da Medicina.
[1] Prefácio a: Barahona Fernandes – Antropociências da Psiquiatria e da Saúde Mental, volume I, Lisboa, 1998 (Fundação Gulbenkian), pp. XXVI-XVII.