A pandemia vista da Suécia, um ano depois
Anders Tegnell, que aguentou as críticas de meio mundo, estava afinal certo. Sem confinamento obrigatório, com escolas abertas para menores de 16 anos durante todo o ano de 2020 e com a normalidade possível num quotidiano exigente, a Suécia chega ao dia de hoje a respirar um pouco melhor. Sem gritaria, sem constantes debates, insultos ou difamações.
Vivendo entre dois países que se tocam nas discussões da pandemia, sinto-me, ainda assim, em realidades bastantes distintas. A Suécia e o seu epidemiologista chefe, Anders Tegnell (AT), absolutamente massacrados há cerca de um ano, na altura da crise dos lares, são agora vistos de forma diferente, numa altura em que as infeções e o número de mortos em Portugal dispararam e ultrapassaram os da Suécia.
Jorge Torgal, numa entrevista recente conduzida por Raquel Varela, disse que a forma de medir os efeitos de uma pandemia seria pelo número de mortos. Embora ache que de futuro se estudarão as sequelas dos vivos, físicas e psicológicas (que a crise financeira agravará), concordo com a essência da frase. Os mortos dão-nos a dimensão da catástrofe.
E, nesse campo, não restam grandes dúvidas quando consultamos os números publicados pelo SCB (o INE sueco). Dos 10.916 óbitos registados por covid, até janeiro deste ano, 91,1% aconteceram na parte da população com mais de 70 anos. E, nestes, mais de metade ultrapassara os 85 anos.
O outro dado curioso, também disponível para consulta pública, é que cerca de 75% destas pessoas viviam em lares ou em casa própria com assistência ao domicílio (por parte do Estado). Sabe-se hoje também que metade sofria de doenças cardiovasculares, 30% tinha diabetes e 15% padecia de insuficiências pulmonares.
Um Estado que estuda a pandemia e disponibiliza a informação à população está mais próximo de resolver os problemas criados pela mesma. Desde logo porque nos envolve na discussão, mas também porque conta connosco para sermos parte da solução.
Os números não retiram valor a cada uma das vidas, mas ajudam a perceber que a fatia da população mais vulnerável está perfeitamente identificada. Um estudo publicado pelo Centro Nacional de Informação Biotécnica (NCBI) dos EUA, em novembro passado, que comparou as mortes em lares de 12 países da OCDE, confirmou as tendências observadas no caso sueco.
Na média dos 12 países estudados (dez europeus, EUA e Canadá), 92% dos óbitos acontecerem em lares (47%) ou com idosos que ainda viviam na própria casa (45%). Portanto, independentemente dos confinamentos gerais (que na verdade deixam de fora grande parte da população), do encerramento das escolas, das variantes de SNS em cada país e do maior ou menor número de restrições, os dados que vão aparecendo a conta-gotas parecem indicar que as mortes acontecem, na sua maioria, nos mesmos sítios (lares/tratamento ao domicílio) e em condições semelhantes.
Portugal, enquanto viveu o “milagre” da primavera, teve tempo para preparar esta vaga mas, sabendo onde estavam os mais frágeis, pouco fez para evitar a catástrofe.
Nada foi feito nos lares. A rotatividade de trabalhadores não qualificados ou a rede de estabelecimentos ilegais continuam como sempre estiveram. As requisições aos hospitais privados tardam ou aparecem em negócios PPP com lucros fantásticos. A EDP continua a cobrar a eletricidade mais cara da Europa, deixando a muitas famílias, presas em casa e já sem emprego, a opção de comer ou aquecer a sala. Era aqui que o Governo poderia de facto ter feito a diferença.
Um ano depois, já conseguimos ver os estragos da pandemia na Suécia. A sobremortalidade foi de cerca de 7000 óbitos, com 70% deles a acontecerem nos meses de Abril e Maio, o pico da crise nos lares onde o Governo assumiu a resposta tardia (tal como em muitos outros países, acrescente-se). Se esta pandemia nos ensinou algo é que os Estados, de uma forma geral, não têm grandes soluções para acolher os mais idosos nos seus últimos anos. O sistema capitalista descarta quem não produz. O estudo feito pelo NCBI confirma esta ideia, das mortes nos lares e, se algum dia tal análise for feita em Portugal, provavelmente chegaremos às mesmas conclusões.
Durante o mesmo período de tempo Portugal confinou, fechou escolas e arrasou boa parte das pequenas e médias empresas. Qual foi o saldo? Quase o dobro da sobremortalidade sueca, 13.500 mortos contabilizados na data em que escrevo, com o fosso para a Suécia a crescer na ordem dos 200 por dia. Não será este o momento de quem decide parar para pensar?
Anders Tegnell, que aguentou as críticas de meio mundo, estava afinal certo. Sem confinamento obrigatório, com escolas abertas para menores de 16 anos durante todo o ano de 2020 e com a normalidade possível num quotidiano exigente, a Suécia chega ao dia de hoje a respirar um pouco melhor. Sem gritaria, sem constantes debates, insultos ou difamações. A conseguir pensar para lá da pandemia.
Uma das razões para isto é a independência das autoridades de saúde em relação ao poder político (mesmo depois da alteração recente da lei). Em Portugal, os especialistas aconselharam o Governo a não confinar na primeira vaga, contudo, não foi esse o caminho escolhido. Por aqui foram os cientistas que traçaram o rumo.
É também importante referir que, enquanto os especialistas de saúde foram decidindo que restrições aplicar e de que forma, o Governo fez a sua parte, apoiando financeiramente as empresas e garantindo a manutenção de muitos postos de trabalho. E quando digo apoiar, não me refiro a linhas de crédito que não são mais do que endividamento dos privados. Refiro-me a pagar efetivamente parte dos salários. Esta proteção aos trabalhadores deixou a Suécia numa posição mais favorável para combater a grave crise económica que se aproxima. Com ou sem “bazucas”.
Perante os factos suecos, mudou-se então a narrativa da última primavera. O Governo, que outrora ignorava as pessoas em nome da salvação económica, passou a liderar cidadãos “frios”, isolados, que não jantam em família ou que não tocam em quem está por perto. Ou seja, que toda a vida viveram numa espécie de confinamento.
Cria-se assim, tal como no passado, uma imagem que dê sentido à nossa crença. Mesmo que essa caricatura não corresponda à realidade. Para quem defende o confinamento em Portugal, é mais fácil retratar cada sueco a viver sozinho numa caverna e, por isso, longe por natureza de qualquer contacto. Para quem vê as ambulâncias à porta do Hospital de Santa Maria e as notícias da rutura no sistema, assume-se desde logo que o SNS sueco tem melhores condições e por isso não pode ser comparado com a realidade portuguesa. Ora, a verdade é que o SNS sueco tem, desde sempre, falta de médicos e já muito antes da pandemia faziam uma triagem (telefónica/centros de saúde) que garantia o acesso ao hospital para quem realmente necessita. Este tipo de organização permite, por exemplo, que 75% das pessoas que estavam sem necessidade naquelas filas de ambulâncias, tão repetidas nos telejornais, pudessem ser vistas nos centros de saúde ou ouvidas numa linha de apoio para que se percebesse a urgência e a necessidade de encaminhamento. Esta reorganização foi feita na Suécia, pelo menos nesta fase, de forma a evitar o caos nos hospitais.
Em Portugal, apesar de sermos bombardeados 24 horas por dia com o tema, nem por isso avançamos muito no esclarecimento da opinião pública. Perdura o caos e a gritaria. Deixámos de debater para acusar. Abdicamos de ouvir os outros para nos enlearmos na soberba das nossas opiniões. E até já se pede, em direto e no canal público de televisão, que as opiniões sejam controladas e censuradas. É certamente uma nova forma de Democracia esta que a pandemia nos apresenta.
Com tantas horas de transmissão televisiva, com uma agenda absolutamente preenchida pelas discussões em torno da covid e sem que se perceba o rumo governativo, pergunto: já alguém se lembrou de perguntar de onde chegam os nossos mortos? Ainda vamos a tempo de fazer algo ou esperamos apenas, tal como na altura do “milagre”, que o aumento da temperatura dê uma ajuda à curva de que tanto se fala?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico