Covid-19: que erros continuamos a cometer passados 11 meses de pandemia?
O PÚBLICO falou com quatro especialistas que explicam quais os erros que continuamos a cometer e qual pode ser o nosso papel na luta contra este vírus.
A situação da pandemia de covid-19 em Portugal continua a ser preocupante, embora o número de novos casos de infecção tenha vindo a diminuir devido ao “esforço significativo” dos portugueses no cumprimento das restrições, conforme destacou a ministra da Saúde. Mas prevêem-se ainda semanas difíceis. Enquanto indivíduos, que podemos fazer para ajudar a travar a propagação do novo coronavírus? O PÚBLICO falou com quatro especialistas que explicam quais os erros que continuamos a cometer, passados 11 meses de pandemia, e qual pode ser o nosso papel na luta contra este vírus.
Não respeitar o conceito da bolha social
Continua a ser “muito importante” respeitarmos o conceito da bolha social, o que significa “mantermos comportamentos de risco — estar sem máscara e a menos de dois metros de distância — apenas com as pessoas do nosso agregado familiar”, explica Tiago Correia, professor de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT). “Os adultos, mas também os jovens, acabam por baixar um bocadinho a guarda com pessoas do seu trabalho, do seu dia-a-dia, mas também com amigos e colegas, nem que seja para fumar um cigarro ou tomar um café e isso é um problema”, nota.
Elisabete Ramos, investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologia, salienta que “nós, na verdade, não temos consciência que somos elos de ligação entre pessoas que de outra forma não teriam contacto” dentro de “redes gigantes”. Mas facto é que “qualquer um de nós pode ser um elemento crítico numa cadeia de transmissão e salvar vidas”, afirma Bernardo Gomes, médico de saúde pública.
Porém, Tiago Correia salienta que respeitar o conceito da bolha “não significa abdicar dos contactos sociais, mas sim impor-lhes limites físicos”.
Confiar que os outros não estão infectados
“Podem ser amigos muito próximos, mas se nós não convivermos com eles diariamente não devemos ter comportamentos de risco”, diz Tiago Correia, salientando que “há possibilidade de as pessoas estarem a transmitir o vírus e não terem consciência”, uma vez que há casos assintomáticos. Além disso, “há pessoas que deliberadamente desvalorizam ou omitem os sintomas”.
Em causa está também a percepção do risco. Segundo Elisabete Ramos, o facto de as pessoas descurarem, por vezes, os cuidados junto da família e amigos “tem que ver com a lógica de não conseguirmos ver algumas pessoas como potenciais riscos porque foram sempre aquelas que cuidaram de nós, nos protegem e aqueles que nós procuramos quando precisamos de alguma coisa”. Mas, embora “na prática isto seja bom” — “mau seria se não tivéssemos esse lado humano” —, “é mau para a [transmissão da] infecção”.
Em termos gerais, temos também tendência para “assumir que quer nós quer os outros não estamos infectados e isto é particularmente perigoso quando falamos de uma doença que se transmite ainda antes de haver sintomas”, explica a especialista.
Uso indevido da máscara
Outro erro que continuamos a cometer está relacionado com o uso incorrecto ou a não utilização da máscara. “Independentemente da tipologia, o ajuste da máscara tem que ser bom”, alerta Bernardo Gomes. Além disso, há pessoas que, por impulso, tiram a máscara no momento de falar: “É exactamente nesse momento que a máscara deve estar posta.”
Tiago Correia destaca, por sua vez, que “utilizar máscara significa tapar a boca e o nariz e cumprir as regras das máscaras”, entre as quais “não utilizar máscaras descartáveis por tempo indefinido”.
Não lavar as mãos regularmente
Para Elisabete Ramos, “o aspecto mais importante de todos” é a lavagem das mãos, algo que “nós temos descurado”. “É-nos algo tão comum que é estranho imaginar que uma pandemia deste tamanho depende de um gesto tão simples”, nota.
Desvalorizar sintomas
Embora inicialmente se atribuísse um conjunto limitado de sintomas à covid-19, Bernardo Gomes explica que há indivíduos com covid-19 que apenas apresentam “mal-estar geral, dores de corpo ou de cabeça ou alterações gastrointestinais”. Por isso, salienta a importância do diagnóstico e atenção aos sintomas, especialmente em zonas onde exista transmissão comunitária. A isto junta-se o facto de as pessoas poderem achar que se trata apenas de “gripe ou de uma infecção respiratória normal”. “Mas no contexto epidemiológico que estamos a viver é para suspeitar de covid-19 até que provem o contrário.”
Focarmo-nos nas excepções e não no que é seguro
O próprio primeiro-ministro chegou, em Novembro, a dar “puxões de orelhas” àqueles que enveredaram por uma “caça à excepção” — embora o confinamento mais rigoroso, implementado em meados de Janeiro, tenha impossibilitado um pouco mais estes comportamentos.
Para Tiago Correia, “o facto de as pessoas estarem mais presas àquilo que são as permissões revela duas coisas: cansaço, porque as pessoas procuram fugir às imposições e manter as suas rotinas, mas também revela que a mensagem está desacreditada.” Já o psiquiatra Pedro Morgado admite que seria desejável que as pessoas se centrassem naquilo que é seguro, mas lembra que “há pessoas que simplesmente não percepcionam o risco”. “Seja porque entendem que não serão afectadas por não se enquadrarem em grupos de risco, seja porque desvalorizam a facilidade da transmissão e a gravidade da pandemia”, diz.
Assumir que tudo o que é feito ao ar livre é seguro
“O que é seguro é o distanciamento social e a utilização da máscara, mas isto é válido tanto para o espaço interior como para o espaço exterior”, alerta Tiago Correia, salientando, porém, que “no espaço interior o risco de concentração do vírus é maior”, pelo que a ventilação é essencial. E ventilação não significa apenas abrir uma janela: “É preciso garantir uma circulação de ar.” Se pudermos optar, devemos escolher um espaço exterior, mas mesmo assim não há risco zero.
Acreditar que a vacinação permite relaxar
Com o início da vacinação contra a covid-19 e o “anúncio de uma luz de esperança”, “as pessoas acharam que podem facilitar”, explica Bernardo Gomes, mas “é ainda baixíssima a proporção de indivíduos que estão vacinados” e vai demorar algum tempo a completar este processo.
Tiago Correia alerta que “a distribuição das vacinas está a ser mais demorada do que aquilo que se esperava e estão a acontecer as mutações normais do vírus”. “É possível que, mesmo depois de a população estar vacinada, existam variantes e mutações que podem afectar a imunidade das pessoas”, acrescenta.
Além disso, Tiago Correia salienta que não se “sabe qual é a duração da resposta imunitária natural nem da vacina” e que “as vacinas são eficazes para impedir o desenvolvimento da doença, mas não há certezas se as pessoas vacinadas não transmitem o vírus para outras”.
Pressupor que não vamos apanhar o vírus duas vezes
Há ainda quem acredite que, já tendo tido uma infecção prévia, não irá contrair o vírus novamente. Contudo, embora raros, são conhecidos alguns casos de reinfecção. “A circunstância da infecção prévia dá-nos alguma segurança factual. Mas o problema é que a duração dessa imunidade depende de indivíduo para indivíduo”, diz Bernardo Gomes. É ainda necessário ter em conta que, embora possamos não voltar a ficar doentes, poderemos eventualmente ter algum papel na transmissão do vírus a terceiros.
Pensar que a generalidade das pessoas tem infecção ligeira
A percepção de que as pessoas deixaram de ter “medo” do vírus está relacionada com aquilo a que os especialistas chamam “fadiga pandémica”. “A fadiga pandémica tem como consequência principal gerar mais erros: erros de percepção e enquadramento dos riscos; erros na adopção de comportamentos responsáveis; e erros na reacção às notícias que vamos recebendo”, explica o psiquiatra Pedro Morgado.
Já Elisabete Ramos afirma que, além de sermos “seres de hábitos”, o que torna difícil a adaptação a uma nova realidade, há um “valorizar da informação que diz que para a generalidade das pessoas a infecção é relativamente ligeira”, o que nos leva a correr alguns riscos. Porém, os dados mostram que os números de pessoas internadas e que morrem com a doença permanecem demasiado elevados, pelo que não é ainda altura para relaxar.
A especialista destaca ainda que podemos ter um papel em alertar (delicadamente) os outros para que cumpram as recomendações. Até porque “muitos comportamentos são coisas que fazemos automaticamente e que não nos apercebemos”, nota, salientando que todos, em algum momento, acabamos por cometer um descuido. Mas, ainda assim, cada pequeno cuidado pode fazer a diferença — até porque, ao que tudo indica, a carga viral pode ter também impacto na gravidade da doença.
“Este é um jogo de equipa e só se ganha se a equipa estiver toda a trabalhar para o sucesso”, nota Elisabete Ramos. “É verdade que todos estão cansados e há muita coisa da qual sentimos falta, mas se não fizermos este esforço agora vamos demorar mais tempo a conseguir ter aquilo de que temos saudades.”